“Os
problemas da escola e da violência não serão resolvidos constatando-se que são fatos de sociedade, o que não quer dizer
estritamente nada: onde a violência é um fato
de barbárie, a escola é um fato de
razão, e esses dois fatos, diga-se o que disser, permanecerão sempre
estranhos um ao outro”.
J.-F.
Mattéi. A barbárie interior, 1999.
A primeira cena do filme em
tom sépia é um depoimento. O filme é O
dia da saia, de Jean-Paul Lilienfeld, 2008. Saberemos em breve ser o
depoimento da protagonista, a professora de francês Sonia Bergerac: “não tive
escolha”, diz ela desoladamente, “aqueles adolescentes haviam se tornado meus
inimigos”. Em seguida, vemos um grupo de moços e moças de uma escola, contam
vantagens, discutem, brigam fisicamente, aglomeram-se sobre a porta na frente
da qual pergunta a professora: são
selvagens? ao que lhe contrapõe um de seus alunos: por que sou negro? O discurso do excluído, nesse caso, contribui
para autorização da barbárie, com a razão absoluta de sua minoria: um discurso
contraditório, como a professora mais adiante irá mostrar, já que a todo tempo quem
o repete exclui ou nega o outro para afirmar um orgulho cuja história sequer
conhece. Boa parte desses alunos é de família muçulmana e vive num dos subúrbios
de Paris. A selvageria aqui, obviamente, não se reduz a negros, nem a homens da
selva, os silvícolas. Corresponde, antes, à barbárie de não conter o pior de si,
de falar sem pensar no que diz e a quem diz, de orgulhar-se do que não conhece,
de excluir imediatamente o que se nega a conhecer. Barbárie como efeito, é
claro, de nosso próprio tempo. Barbárie como condição social e étnica à qual são submetidos esses jovens. Quanto mais à escola se abre a tudo o que
possível, e problemática, da vida social e mais aceita o direito de ser absoluto de qualquer
individual, mais impotente se faz para se guardar seguramente na fronteira de
sua civilidade e menos capaz se torna de valorar o que nos deixou o legado das
civilizações, ocidental ou oriental, cristã ou muçulmana. Afinal, que importa
Molière! Como poderia ainda ser importante? Para que aprendê-lo? “Que é o amor? Que é criação? Que é anseio? Que é
estrela?” (...), assim falava Zaratustra: “A terra, então, tornou-se pequena e
nela anda aos pulinhos o último homem, que tudo apequena”. Tempo de domínio dos
últimos homens: só superam o passado destruindo o que de valioso lhes é
concedido e precedido, e assim avançam, avançam, acumulam coisas, direitos, informações,
tecnologias, receitas para se viver e prolongar a vida, e remédios para não
sofrer. E que humanidade ainda é
possível a esses últimos homens que somos nós mesmos? que tudo quer sob si, que
tudo relaciona a si, mas que resiste a elevar a si mesmo da barbárie de seus
caprichos e da violência de suas razões. Incapaz de se abrir ao outro e
reconhecê-lo na sua diferença, sobretudo quando o diferente lhe é artística e humanamente
superior: mas que bagulho é esse, Molière!
No interior do teatro de uma
escola pública, trancada a porta com corrente e cadeado, a professora até
consegue falar sobre Molière. Mas com uma pistola na mão. Uma arma que não
escolhe livremente tê-la à mão (se pudesse escolher, teria apenas consigo o livro
de Molière). A arma, em todo caso, configura uma nova relação de poder no drama
fictício da vida real: se estava submissa, agora submete, se vivia ameaçada,
agora ameaça, e pode, no limite das novas regras impostas, ensinar Molière e
falar sobre o valor da escola à vida de cada um. O acaso muda o lugar da força,
o que não quer dizer que a força se estabilize, nem muito menos que a ordem
esteja garantida, afinal, se as armas existem e fazem parte da vida social, estando
elas dentro ou fora da lei, a escola não é o lugar próprio para guardá-las e,
menos ainda, para usá-las, assim o drama continua.
E quanto à saia? A direção da
escola insistia para a professora não usar saia, pois isso só lhe favorecia o
escárnio machista e preconceituoso. E para que saias se existem calças? Fora do
filme, em fevereiro ainda deste ano, a ministra francesa dos direitos da mulher
revogou a norma complementar de 1909, que permitia às mulheres usarem calças somente
quando ao andar de bicicleta, embora a Constituição de 1946 já reconhecesse a
igualdade entre homens e mulheres e também por isso a norma não passava de uma
peça de museu, como disse a ministra Najat Vallaud-Belkacem. Mas, pergunto: e quanto ao direito da
mulher de usar saias, seria uma retrocesso histórico? a necessidade e a pretensão de tal
direito já não revelaria o quanto nós, homens e mulheres, regredimos no respeito
humano? As calças não imporiam uma nova ordem à mulher atual, especialmente quanto
a seu direito de simplesmente ser mulher e de se tornar feminina?
Esse problema é posto na entrelinhas do filme: o de ser mulher e professora sob
o império de um caos movido pela força e pela ameaça, pela agressão iminente, contra
a qual ninguém tem o poder de fazer algo, porque todos temem o caos das paixões
dentro e fora da escola. Quando não temos com quem contar no mundo, estamos
fadados à barbárie. “A barbárie é a tendência à dissociação”, disse Ortega y
Gasset. Dissociação da comunidade e de sua história, sublevação tirânica de
todos os eus e desejos passíveis de uma expressão sem valor: se nada faz sentido, tudo é permitido,
eis nossa época. Quanto à escola, se tudo permite, e no lugar de responder a
estatísticas não cria o espaço para pensar sobre sua condição e assim dar
sentido ao que faz, nada mais lhe cabe fazer senão deixar os professores
adoecerem e a polícia entrar. É isso que queremos? Não agiríamos contra nós mesmos se o permitimos? Se manter a civilidade se insurge como o grande
desafio ao lugar para o qual o aprender teria de valer como sua primeira condição,
que é possível ainda ensinar? É preciso reconhecer que nosso projeto iluminista
de uma humanidade livre e responsável fracassou, e é preciso enfrentar esse
fracasso se não quisermos nos afundar ainda mais na repetição virtual e real da
violência, e assim perder de nossa experiência humana o que de mais rico pode
ser recebido e devolvido ao mundo. Não há esclarecimento que vença o deserto
escuro por onde vagamos, não há euforia que suporte o tédio de um progresso sem
finalidade. Pior para nós sem Molière! Pior para nós não termos professores bem pagos e sem medo de fazerem vivo mais uma vez Molière para rirmos sempre de seus personagens cínicos e avarentos e aprendermos a rir de nós mesmos: quanto mais
funcionamos, menos sentimos (e mesmo o pior é mastigado diariamente na ordem
das notícias do dia). Viva Lilienfeld! a ficção de sua tragédia pode nos
deslocar da habitualidade das ocupações e nos dar a coragem para pensar e
discutir uma realidade anestesiada e obscurecida pela estupidez de nosso tempo.
Jason
de Lima e Silva