domingo, 22 de dezembro de 2013



Esconda tuas virtudes no monte de argila, molde sempre o que aparece e guarde tua dor no coração da terra. Quando o vento se fizer brisa, cante para o deus que na árvore se esconde e peça às nuvens para te livrar do peso dos dias. Tudo é tão breve que toda leveza é cara. Nada espetacular chega para além do que já cultivamos e há sempre o risco de perdemos o que possuímos. Não há culpa nem salvação. Nem desculpas ao que não podes, nem esperanças ao que não tens.


Jason de Lima e Silva

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

E nas rugas o traço de tua primeira dor.






E nas rugas o traço de tua primeira dor, o hábito de todos os silêncios, a compenetração da matéria em seu respeito ao sol, nuvens que cortam as linhas da memória no rosto e cruzam a intimidade de teu olhar, e na encruzilhada desses caminhos a fisionomia de tudo o que foste e sobeste abandonar, o mesmo perigo pressentido sempre, os amigos esquecidos ou esperados, os amores vividos por distração ou perdidos por muito zelo, assim vibram na testa teus pensamentos não pensados, e nas têmporas, a coragem de não lamentar, quantos fracassos te custou a vida, e há ainda lugar para mais uma ilusão.

Jason de Lima e Silva

quinta-feira, 7 de novembro de 2013





Como viajar sem se perder? Uma viagem antecipadamente pronta é tão segura quanto uma TV cujos programas escolhemos sem ver, quando o importante é não ser perturbado na abstração dos ruídos e das imagens. Tal viagem não passa de um deslocamento provisório da plena repetição dos dias comuns, com alguma curiosidade ao paladar, para não lamentarmos também tudo querer e nada fazer sentido. Ao menos, podemos guardar nas malas o vazio de nossos íntimos e compartilhar apenas os cartões postais de uma felicidade representada. Afinal, quem de fato está preparado para cultivar os mais simples gestos do mundo com outros e, ao mesmo tempo, viver os perigos a nos dar sempre e gratuitamente a vida, só para nos devolver seu gosto? O breve tempo de nossa passagem no espetáculo vivo dos lugares distantes nos coloca à cena o personagem que sobe ao palco para um dia deixar o mundo: sem ter a chance de refazer o drama. E assim é a vida, diz para si o viajante, em sua terra ou fora dela: tudo é efêmero. Perder-se é poder contemplar o contínuo sonho das coisas nos seus devidos lugares e mais uma vez experimentar a razão de nada mais voltar a ser como era antes. E nem nós sermos mais os mesmos.


Jason de Lima e Silva




Crônica de uma viagem inventada



Em Porto, paramos à frente da igreja da Sé, eu e meu amigo. A paisagem adiante era a de uma cidade sonhada, na qual tudo se encaixava, azulejo sobre azulejo, varal sobre varal, casario sobre casario, rústicos vermelhos e amarelos, com suas ruelas imperfeitas que se encontravam perfeitamente no caminho das pedras em ladeiras sem fim, sob escadarias solitárias e janelas em arcos de pedra. Eu havia de fato sonhado com a cidade há duas noites, ainda em Braga. E no sonho era noite. Suas casas, suas igrejas góticas e barrocas se moviam, seus palacetes e telhados de quatro águas, tudo se movimentava, morros e ladeiras subiam e desciam lentamente sob minha vista, e era preciso andar e chegar ao lugar certo na hora certa para nada se desencaixar, sobretudo quando repentinamente o movimento era interrompido. A cidade estava agora parada à nossa frente e nós nos lançamos escadaria abaixo, ao lado do átrio da Sé. Chegamos ao rio Douro



As embarcações são obras da natureza ou do homem? Os arcos da ponte metálica, os arcos de pedra da ponte medieval: tudo é um. Sentamos na ponta de uma mureta cujas pedras se alinhavam à distância. O rio seguia seu fluxo como um espelho de prata do céu nublado. Acendemos uma cigarrilha para admirar a cena e tomar fôlego, enquanto um casal de senhores nórdicos se aproximou. Trocamos uma dezena de palavras pelos olhos, sorrimos e nos acenamos. Seguimos a andança pelo cais, eu e o amigo, a ponte de aço se erguia como uma aranha metálica sobre nossas cabeças. Sentimos sede e nos entendemos silenciosamente sobre a necessidade de água quando, pelo instante de uma eternidade, me vi dentro de um sonho que não era o meu sonho, mas o sonho que jamais havia sido sonhado por qualquer alguém, por qualquer eu convicto de si mesmo, porque era justo o sonho de todas as vidas humanas. Era preciso firmar o passo naquele mundo de fantasmas que era a mais íntima realidade da existência, a ilusão de todas as esperas, a inquietação de todas as horas, a carência e o malogro de tudo, série de coincidências sem sentido, forças sem efeito, coisas que se perdem aqui e se encontram acolá. Era preciso firmar o passo de alguém que estava dentro desse sonho e seguia os passos de alguém sonhado a procura também de algo que se perdia. Água! Nem a sede mais me era real. O real: fragmento de chumbo de todas as consciências estilhaçadas, cristalina ficção e fixação de nossos sentidos. Firmar o passo atrás daquele personagem não garantiu ao personagem que o seguia a fortaleza contra a sensação de que qualquer coisa poderia ali acontecer, voar sobre o profundo silêncio daquela cidade misteriosa ou apenas se livrar imediatamente do maldito sonho, sentar-se num banco qualquer e gritar com toda energia para se acordar de vez, e apertar o próprio o corpo e agarrar-se à memória de uma vida pacata e à lembrança de um minguado de gente que lhe quer bem e jamais sonhou vê-lo enforcado. É preciso arrancar à força a corda que o mundo nos põe ao pescoço, mas é preciso senti-la muito bem antes de querer morrer. Identificamos a placa de uma loja de conveniências naquele sonho. O cara que nos atendeu assobiava uma melodia pop conhecida, com  tanta leveza de alma que compreendi a verdadeira razão da água neste universo. Atravessei porta de vidro afora e me deitei no primeiro banco de pedra para assim me saber num cais de uma cidade do mundo que falava a minha língua e me trazia o sangue dos mouros, o ruído de seus comércios e a visão dos franciscanos decapitados e das catacumbas de padres na igreja do outro lado da ponte, quando então senti os olhos suavemente queimados pela breve claridade do dia e reconheci meu amigo e a água oferecida que a cada gole me fazia mais vivo do que nunca, e mais uma vez, estranho o bastante para toda uma vida. 


Jason de Lima e Silva

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Amigo






Amigo. Esperas meu abraço amigo? Esperas algum louvor para teus feitos? Mas que feitos! Alguém bate à porta. Não há ninguém. E procuras ainda uma multidão de gente. Quem pode acolher tua mais íntima e valorosa estranheza? Guarda-a contigo a sete chaves! Muito vale o ouro porque se esconde no seio da rocha. E é preciso esculpi-la sempre e sempre para encontrar teu ouro. Ainda assim, talvez ele seja apenas uma pedra tosca no ruído do grande vazio dos ouvidos e dos corações alheios. Afinal, é tanta aparição de coisas que já viramos fantasmas. Amigo, eu sei, esperas ao menos um amigo para te sentires menos pobre neste mundo. E quem sabe, nobre o bastante para nada temer.

                                                                                                                         Jason de Lima e Silva

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Palavras




Palavras ditas para perdê-las. Palavras que caem dos bolsos e que chutamos por diversão. Palavras cuspidas em ouvidos ocupados. Palavras que esbarram em paredes e morrem de tédio. Palavras como fetos mortos na multidão. Palavras prontas para engordarmos. Palavras de duplas bocas como latas abertas repicadas por línguas agitadas. Palavras não lavradas pelo tempo. Palavras doentes de nada dizer para de todos falar. Palavras indigentes de silêncio. Palavras e mais palavras. Pobres palavras.


  Jason de Lima e Silva







terça-feira, 8 de outubro de 2013

Uma hora a menos




Uma hora a menos e meu silêncio é sagrado. É preciso cultivar a dor para um aceno vir do mar e levar ao vento tuas forças quase perdidas. Antes de anoitecer e as vagas subirem, estarás à maré sem compreender a névoa donde chegaste. Teus pés estão duros de frio, a terra ainda é fria, mas as mãos fazem fogo de tanto esfregá-las. A noite cai e as labaredas iluminam à tua volta: há anjos que se aproximam e perguntam o que sentes vivo. Não há como dizer, dizes, é preciso esfregar as mãos e sentir o fogo esquentar: por sorte, tenho o fogo. Os anjos riem e dizem haver muito perigo e amor no fogo. Tu não compreendes a língua dos anjos, mas não quer espantá-los e apenas sorri. Há pouco, vejam, meus pés estavam tão frios que eu mal os sentia, não sei de onde vim e nem para onde vou, sinto fome. Um vulto se aproxima e fala com a gravidade de tua voz, mais alto que o estalo do fogo: que sentido há nisso tudo! Os anjos sorriem mais uma vez, olham-se como sombras e desaparecem junto à chama que aos poucos se apaga. Adiante no céu negro desponta um planeta. É preciso andar, vencer o frio, saber-se humano. Nada além de humano.

Jason de Lima e Silva

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Conselhos do Tempo



Repousa teus olhos tristes sobre mim
e faça-me o coração de tua promessa
embora pareça longo o caminho da vida
Não abomines tuas insônias d’ Outrora
nem insista em te conheceres profundamente
quando profundo é teu próprio destino
  
Retorne à sombra de teu mais santo Cansaço
sem perder-te na névoa dos dias futuros
onde lá dormem tuas dores terrenas
E na sensatez de tua solitária Morada
aproveite o que na respiração da matéria
faz o viver de teu espírito
neste jardim onde entre mortos e vivos
Tu
singularíssima alma
move a errância da humanidade

Jason de Lima e Silva

domingo, 25 de agosto de 2013

Os 12 Macacos

Questões sobre a urgência.

“Em 1997, 5 bilhões de pessoas morrerão de um vírus (...) os
sobreviventes abandonarão a superfície do planeta (...) os animais voltarão a dominar o mundo" — assim começa um filme que nunca atingiu seu valor crítico. Designá-lo como cult é mais sintomático que descritivo. É duvidoso se nossa sina é mais atermo-nos ao roteiro que ao tema de um filme. Porém, neste caso, é de dúvida em dúvida que o roteiro se enriquece. É mui sabido que a dúvida metódica cartesiana inaugura a modernidade e, com ela, a antropocentrismo moral. Mas as questões levantadas por Os 12 Macacos é mais problemática que metódica: de indagação em indagação este filme nos revela que a historia moderna chegou ao acabamento da radicalização da dúvida. A antiga ontologia que angustiara com seu “ser ou não ser, eis a questão” chegou a traduzir-se em “homem ou animal, natureza ou cultura, eis nós mesmos em questão”. Neste sentido, somente podemos tecer uma crítica positiva a este filme através de uma seqüência cronológica de dúvidas, animadas por protagonistas igualmente nebulosos. O filme trata de viagem no tempo e coloca o espectador na dúvida narrativa. E uma vez que já inventamos a narrativa problemática, precisamos aqui expor o abismo em que nossa dúvida se angustia ou se esquece do que precisaria respeitar. O protagonista estaria na loucura ou na realidade? E não esquecemos que todo louco tem razão e que, inversamente, nossa razão racionalista e moderna 
nos trouxe a loucura antropocêntrica. Esta parece ser a pergunta do filme, o seu problema.




Mas a obra está a responder outro problema, efetivo problema prático, real e presente: o ambientalismo é terrorismo? Esta observação parecerá estranha ao leitor amante de romances. Mesmo os adoradores de drama poderão ter dificuldade para compreender. Os comediantes que me acompanhem. Mas estou exigindo um leitor que ame o gênero trágico. Édipo se repete neste filme, mas este edípico é aqui mais socialista que freudiano, castrado por um mundo sem salvador. Vamos colocar o problema do filme de duas maneiras. Por um lado, assistiremos a impressão, lidaremos com a aparência de uma ficção científica, colorida pela brilhante atuação de Bruce Willis, e neste caso a pergunta é “qual é a realidade, viajante do tempo ou esquizofrenia?”. E, quanto a este primeiro aspecto, a ficção está em nossa própria dificuldade duvidosa para o real do problema. Por outro lado, temos outra pergunta, “qual é a realidade, somos viajantes do tempo ou vivemos mútua esquizofrenia?”. E o sintoma neste caso é a experiência do humano cansado de ser em si. Sim, as duas perguntas são iguais, salvo o sujeito, e esta diferença é o primeiro problema, aquele que o drama do roteirista permite compreender. Mas as dúvidas rodadas no filme admitem um segundo lado na historia: a democracia termina no seu fracasso ambiental? O liberalismo econômico é capaz de solucionar o problema ambiental iniciado pela democracia? Ou o liberalismo econômico nos tornaria socialmente esquizofrênicos para com nosso tempo? É fácil sentir o cheiro pesado deste ar: a questão não mais se coloca nem se responde entre natureza e sociedade. Afinal, o dinheiro hoje compra felicidade na mesma medida em que mesmo o pobre sente ter o poder de comprar quase tudo. Vamos recolocar a questão mais uma vez: a essência da democracia está na participação política de cada um. Isto somente é possível através do voto. Ou: a essência da democracia está na participação econômica de cada um e isto só é possível através da demanda e do poder de compra. Como democratas, precisamos votar sobre nossos problemas ambientais e sustentáveis. Mas isto é impossível? Os 12 Macacos afirma: de um lado a demanda de jovens socialmente engajados com o respeito aos animais; de outro lado, a ciência economicamente motivada lucrando em produzir e curar vírus. Mas ambos os caminhos, apesar de opostos, possuem o mesmo sentido: dizem “não” ao valor unilateral do homem. O alcance dos problemas ambientais é internacional e, portanto, o povo jamais poderá participar política e intelectualmente de tais soluções. Por isso, nossa situação presente, o peso de nosso futuro, se divide em três soluções: fundar a democracia no liberalismo econômico e não político, dando ao livre valor comercial o poder de adaptar o interesse sustentável de cada um; ou substituir a democracia pelo socialismo, o que só é possível absolvendo tanto o capitalismo quanto o naturalismo no interior do neo-marxismo; ou, enfim, reconhecer que o poder sobre o destino é aristocrático, exigência de mudança de regime político, o que implica o risco de terrorismo ou mais um tipo de totalitarismo.
Assim, a pergunta é esta: do que Terry Gilliam está tratando em Os 12 Macacos? Jovens ambientalistas, guiados por um louco, inspirados pela sabotagem, ou de uma ciência racionalista, tão louca quanto apesar de fria. De um grupo de jovens ambientalistas surge a ambigüidade entre ecotagem e ecoterrorismo. O filme parece “chamar” a ecotagem de ingênua e o ecoterrorismo de radical. Porém, Terry Gilliam também indica que os meios mais catastróficos para o exercício do ecoterrorismo sempre se origina na empresa privada. Hobbes diria que o povo nasce de uma segunda natureza: mas o político atual é mais povo do que nunca e o empresário atual sente-se fora da população geográfica. Obviamente que não estamos falando de produção de gado em massa, nem de computadores e celulares, mas de armas químicas que, apesar de matarem muitos, também a muitos podem enriquecer com o surgimento de curas, verdadeiros milagres da ciência bem patrocinada. E nada disto diz respeito à intenção ou má vontade: estamos no tempo da liberdade dos interesses, na livre movimentação das demandas. O que fazer? – a questão do filme se relevou intrínseca, pois o único valor intrínseco é a urgência temporal da ação. Mesmo a vida é inerente à urgência – salve os médicos. Não há democracia sustentável nem voto e representação direta ambiental, nem há garantias para mais uma tentativa socialista, e a ecotagem somente assume “entre os males, o menos pior”. Estamos de fato aquém de bem e mal, seja para o liberalismo econômico, para a democracia internacional, para o socialismo ambiental ou para o radicalismo. Quem vale mais – o homem ou o macaco? O futuro é questão de evolução, revolução, progresso ou destruição. Acaso consideremos todas as perspectivas, o roteiro do filme assemelha-se a nossa realidade: não jogos de linguagem, mas efetivos jogos de risco. A questão é se há responsabilidade nos riscos.


Fernando Mauricio Senna

terça-feira, 6 de agosto de 2013

O homem e seu pensamento

        Auguste Rodin, L´Homme et sa pensée c.1900


“A representação de um homem que se ajoelha e, com o toque de sua testa, desperta na rocha diante de si a suave forma de uma mulher, que permanece ligada à pedra. Se quisermos interpretar isso, podemos nos satisfazer com a expressão dessa inseparabilidade do pensamento apegado à testa de um homem: pois sempre são seus pensamentos que vivem e se erguem à sua frente; atrás disso há pedra. Relacionada a isso está também a cabeça que pensativa se dissolve até o queixo em uma grande pedra. La pensée, esse pedaço de claridade, ser e face que se erguem devagar do pesado sono da surda permanência”.

Rainer Maria Rilke, Rodin, 1902


Auguste Rodin, L´Homme et sa pensée c.1900
                                                          


A cabeça do homem se firma sobre o peito juvenil de um ventre feminino. Suas mãos e seu corpo estão presos na terra. Um rosto lhe escapa do cenho e, ao mesmo tempo, acolhe toda sua introspecção. A virilidade do pensamento se concentra na terra, enquanto uma perna lhe toca suavemente o tronco e acende a chama de seus sonhos mais íntimos. Quem me chama? De sua testa uma força se suspende, como se um vento lhe atravessasse a nuca para varrer os leves braços de suas ilusões. Os braços viram pedra. O homem se segura na pedra e por pouco não é varrido também pelo que sempre por si atravessa e se esvai. O pensamento humano está na unidade de uma silenciosa luta que a obra recolhe. O homem não pode abraçar o corpo que está além de seu corpo, embora diante dele se prostre, para não perdê-lo, e contraia assim todos os seus músculos, para não se perder: como me chegou o que a mim me leva? E num instante tudo volta a ser pedra. Como da pedra que pesa o tempo de cada ato, a vida esculpe no pensamento o que lhe é sempre desconhecido e o pensamento recebe da vida a potência além do instante.

Jason de Lima e Silva

quinta-feira, 23 de maio de 2013

O sonho de Cassandra: uma tragédia de Woody Allen


“Escuta: eu ouso, sim, / Tudo o que pode ousar um homem. Crê-me bem. / Mas homem não será o que for mais além”.
W. Shakespeare, Macbeth, c.1610
“—Não quero voltar... Precisamos olhar para o futuro”.
—Mas estamos ultrapassando os limites e não há volta para isso. Eu já disse”
W. Allen, O sonho de Cassandra, 2007
É comum nas tragédias antigas e modernas o anúncio do que inevitavelmente haverá de se impor, apesar de tudo estar aparentemente sob controle e de sempre supor o homem que seu pensamento pode de algum modo destinar o que lhe acontece. O sonho de Cassandra de Woody Allen parece ser um bom filme para pensarmos a condição trágica da própria existência. “Acho que podemos fazer o nosso próprio destino”, diz o personagem Ian à atriz pela qual se sente atraído, e quanto mais se ilude e mais a ilude para mantê-la atraída, menos parece ser dono de seu próprio destino. A condição trágica da existência não se reduz ao fato de um dia morrermos, ideia por si muitas vezes desagradável. O trágico está mais no fato  de continuarmos vivos do que no fado de um dia morrermos. Continuar vivo significa ter de escolher, selecionar o preferível no possível, mesmo que não o queiramos ou tenhamos de escolher o que ainda é um problema. Se na maior parte das vezes apenas respondemos ao que acontece, em alguns momentos, decidimos, e decidir quer dizer cindir em dois, o que era e o que deixou de ser, e assim, separar-se do fluxo contínuo das ações para arriscar um novo começo. E isso nunca é fácil: há sempre o lamento de não termos feito o que poderíamos ou o perigo de não termos querido o que já fizemos. Sem sonhos não vivemos, mas a obediência a uma única ilusão também pode nos matar lentamente. Ou seríamos capazes de matar o outro para não perdê-la?



O filme coloca esse problema, na representação de uma história que começa com a imagem de um barco, O sonho de Cassandra, objeto de desejo dos irmãos Terry e Ian, um mecânico e jogador da sorte, o outro gerente de um restaurante de sua família, restaurante pelo qual não sente nenhum apego e por isso afirma a si mesmo na imagem de um homem de negócios de hotéis na Califórnia, para onde sua ilusão também o destina. Ambos os irmãos se sentem um fracasso e realmente fracassam em muitos de seus lances, e essa consciência os lança ainda mais longe, pois não querem perder: “Acho que tenho a mão vencedora”, diz um deles, “quero ir em frente, arriscar a sorte”. E para não perder fazem de tudo para convencer um ao outro que o único caminho é aquele que a sorte lhes oferece, a sorte de um tio rico. O valor da família atravessa todas essas relações: aparece na fala da mãe à mesa, aparece na fala do tio quando impõe o trato, na fala dos irmãos entre si. É recorrente também o valor de alguém em razão de se ter coisas e de se poder ter mais coisas neste mundo. O barco, O sonho de Cassandra, eles conseguem comprar, mas não compreendem o terrível preço que se ocultou na sorte que lhes deu o barco e tantas outras coisas. Cassandra, aliás, é o nome da personagem troiana que a contragosto possui o dom de profetizar e não ser levada a sério: maldição do deus Apolo que a desejou sem ser desejado. Cassandra aparece na tragédia Agamenôn de Ésquilo, por exemplo, quando em Argos, ao chegar de sua terra nas embarcações gregas, prevê a morte do rei e sua própria morte: “É triste e sem remédio a sorte dos mortais... / Esboça-se a ventura em traços imprecisos; / os males chegam logo, como esponja úmida, / e num instante apagam para sempre o quadro”.
O barco no filme é o quadro que circula como um oráculo entre o início e o fim do drama de dois irmãos e em torno dos quais cada personagem se move pela inconsciência do próprio viver, por paixões e valores que tomam por verdadeiros, ou para sustentar uma família, ou para se sentir alguém de sucesso. “O que você está pensando?”, pergunta Terry a Ian, “O que passou, passou. Nós fizemos e acabou. E é sempre agora”. (That then was then.  We’ve done it and it’s over. And it’s aways now). Na tragédia de Shakespeare, Lady Macbeth irá dizer a seu marido após o assassinato do rei: “O que está feito está feito (What’s done is done) e, mais adiante, quando já não mais suporta a razão do que foi feito sem o pesar de seus efeitos, Lady Macbeth irá se repetir: “O que está feito não pode ser defeito” (What’s done cannot be undone”). E quem é capaz de suportar a ilusão de uma única vida sem negar a si mesmo, e de si mesmo, o que foi feito da sorte e o que se fez das circunstâncias, quando não há volta para o que nos acontece?

Jason de Lima e Silva

domingo, 5 de maio de 2013

O dia da saia: o feminino contra a barbárie

“Os problemas da escola e da violência não serão resolvidos constatando-se que são fatos de sociedade, o que não quer dizer estritamente nada: onde a violência é um fato de barbárie, a escola é um fato de razão, e esses dois fatos, diga-se o que disser, permanecerão sempre estranhos um ao outro”.
J.-F. Mattéi. A barbárie interior, 1999.

A primeira cena do filme em tom sépia é um depoimento. O filme é O dia da saia, de Jean-Paul Lilienfeld, 2008. Saberemos em breve ser o depoimento da protagonista, a professora de francês Sonia Bergerac: “não tive escolha”, diz ela desoladamente, “aqueles adolescentes haviam se tornado meus inimigos”. Em seguida, vemos um grupo de moços e moças de uma escola, contam vantagens, discutem, brigam fisicamente, aglomeram-se sobre a porta na frente da qual pergunta a professora: são selvagens? ao que lhe contrapõe um de seus alunos: por que sou negro? O discurso do excluído, nesse caso, contribui para autorização da barbárie, com a razão absoluta de sua minoria: um discurso contraditório, como a professora mais adiante irá mostrar, já que a todo tempo quem o repete exclui ou nega o outro para afirmar um orgulho cuja história sequer conhece. Boa parte desses alunos é de família muçulmana e vive num dos subúrbios de Paris. A selvageria aqui, obviamente, não se reduz a negros, nem a homens da selva, os silvícolas. Corresponde, antes, à barbárie de não conter o pior de si, de falar sem pensar no que diz e a quem diz, de orgulhar-se do que não conhece, de excluir imediatamente o que se nega a conhecer. Barbárie como efeito, é claro, de nosso próprio tempo. Barbárie como condição social e étnica à qual são submetidos esses jovens. Quanto mais à escola se abre a tudo o que possível, e problemática, da vida social e mais aceita o direito de ser absoluto de qualquer individual, mais impotente se faz para se guardar seguramente na fronteira de sua civilidade e menos capaz se torna de valorar o que nos deixou o legado das civilizações, ocidental ou oriental, cristã ou muçulmana. Afinal, que importa Molière! Como poderia ainda ser importante? Para que aprendê-lo? “Que é o amor? Que é criação? Que é anseio? Que é estrela?” (...), assim falava Zaratustra: “A terra, então, tornou-se pequena e nela anda aos pulinhos o último homem, que tudo apequena”. Tempo de domínio dos últimos homens: só superam o passado destruindo o que de valioso lhes é concedido e precedido, e assim avançam, avançam, acumulam coisas, direitos, informações, tecnologias, receitas para se viver e prolongar a vida, e remédios para não sofrer.  E que humanidade ainda é possível a esses últimos homens que somos nós mesmos? que tudo quer sob si, que tudo relaciona a si, mas que resiste a elevar a si mesmo da barbárie de seus caprichos e da violência de suas razões. Incapaz de se abrir ao outro e reconhecê-lo na sua diferença, sobretudo quando o diferente lhe é artística e humanamente superior: mas que bagulho é esse, Molière!
No interior do teatro de uma escola pública, trancada a porta com corrente e cadeado, a professora até consegue falar sobre Molière. Mas com uma pistola na mão. Uma arma que não escolhe livremente tê-la à mão (se pudesse escolher, teria apenas consigo o livro de Molière). A arma, em todo caso, configura uma nova relação de poder no drama fictício da vida real: se estava submissa, agora submete, se vivia ameaçada, agora ameaça, e pode, no limite das novas regras impostas, ensinar Molière e falar sobre o valor da escola à vida de cada um. O acaso muda o lugar da força, o que não quer dizer que a força se estabilize, nem muito menos que a ordem esteja garantida, afinal, se as armas existem e fazem parte da vida social, estando elas dentro ou fora da lei, a escola não é o lugar próprio para guardá-las e, menos ainda, para usá-las, assim o drama continua.




E quanto à saia? A direção da escola insistia para a professora não usar saia, pois isso só lhe favorecia o escárnio machista e preconceituoso. E para que saias se existem calças? Fora do filme, em fevereiro ainda deste ano, a ministra francesa dos direitos da mulher revogou a norma complementar de 1909, que permitia às mulheres usarem calças somente quando ao andar de bicicleta, embora a Constituição de 1946 já reconhecesse a igualdade entre homens e mulheres e também por isso a norma não passava de uma peça de museu, como disse a ministra Najat Vallaud-Belkacem. Mas, pergunto: e quanto ao direito da mulher de usar saias, seria uma retrocesso histórico? a necessidade e a pretensão de tal direito já não revelaria o quanto nós, homens e mulheres, regredimos no respeito humano? As calças não imporiam uma nova ordem à mulher atual, especialmente quanto a seu direito de simplesmente ser mulher e de se tornar feminina? Esse problema é posto na entrelinhas do filme: o de ser mulher e professora sob o império de um caos movido pela força e pela ameaça, pela agressão iminente, contra a qual ninguém tem o poder de fazer algo, porque todos temem o caos das paixões dentro e fora da escola. Quando não temos com quem contar no mundo, estamos fadados à barbárie. “A barbárie é a tendência à dissociação”, disse Ortega y Gasset. Dissociação da comunidade e de sua história, sublevação tirânica de todos os eus e desejos passíveis de uma expressão sem valor: se nada faz sentido, tudo é permitido, eis nossa época. Quanto à escola, se tudo permite, e no lugar de responder a estatísticas não cria o espaço para pensar sobre sua condição e assim dar sentido ao que faz, nada mais lhe cabe fazer senão deixar os professores adoecerem e a polícia entrar. É isso que queremos? Não agiríamos contra nós mesmos se o permitimos? Se manter a civilidade se insurge como o grande desafio ao lugar para o qual o aprender teria de valer como sua primeira condição, que é possível ainda ensinar? É preciso reconhecer que nosso projeto iluminista de uma humanidade livre e responsável fracassou, e é preciso enfrentar esse fracasso se não quisermos nos afundar ainda mais na repetição virtual e real da violência, e assim perder de nossa experiência humana o que de mais rico pode ser recebido e devolvido ao mundo. Não há esclarecimento que vença o deserto escuro por onde vagamos, não há euforia que suporte o tédio de um progresso sem finalidade. Pior para nós sem Molière! Pior para nós não termos professores bem pagos e sem medo de fazerem vivo mais uma vez Molière para rirmos sempre de seus personagens cínicos e avarentos e aprendermos a rir de nós mesmos: quanto mais funcionamos, menos sentimos (e mesmo o pior é mastigado diariamente na ordem das notícias do dia). Viva Lilienfeld! a ficção de sua tragédia pode nos deslocar da habitualidade das ocupações e nos dar a coragem para pensar e discutir uma realidade anestesiada e obscurecida pela estupidez de nosso tempo.

Jason de Lima e Silva

sábado, 27 de abril de 2013

Shakespeare, Macbeth e Polanski


                                         




"A vida é sombra passageira. / Um pobre ator que chega, agita a cena inteira, / Diz seu papel e sai. / E ninguém mais o nota. / É um conto narrado por um idiota, / Cheio de sons, de fúria e não dizendo nada".
Shakespeare, Macbeth, c.1611





“Nenhuma arte revela / como havemos de ver, na face, por inteiro, / A natureza da alma. Ele era um cavalheiro / Em que muito confiei”. Quem diz isso é Duncan, o rei de toda a Escócia. O rei está com sua escolta, recém seus exércitos enfrentaram o rei da Noruega, por pouco não sucumbem em razão de um traidor, senhor de Cawdor, a quem o rei dirige a frase, o cavalheiro em quem o rei muito confiou. Se a arte é própria do humano, que arte é capaz de revelar completamente quem somos? quem somos a uns e outros? É ingenuidade pensar que sempre seremos os mesmos para uns e outros, e para nós mesmos. E é por isso que podemos melhorar e piorar como seres humanos, a qualquer tempo, no pensamento mais gratuito ou na ação mais calculada. A evidência da traição do senhor de Cawdor coincide com a repetição de um nome, cujos testemunhos fazem coro a sua coragem e avivam seu sucesso na tropa contra os noruegueses: Macbeth.
A arte da tragédia revela, em boa medida, a contradição que move nossas vidas e que silenciosamente remove nossos corações. “O belo é feio e o feio é belo”, diz uma das bruxas no início da peça. O trágico da vida não é a morte, mas a não coincidência entre o que pensamos e o que acontece em nossa vida, tensão entre o que desejamos e o que podemos a cada tempo. Macbeth, com seu companheiro Bancho, mais adiante dirá: “Nunca vi dia assim, a um tempo belo e feio”, no momento em que encontram as bruxas e é anunciada a profecia por diferentes vozes, Salve Macbeth, tu de Glamis já herdeiro / Salve Macbeth, tu nobre Cawdor também/ E também serás rei! Se uma parte de nós sempre aparece, e aparece a cada vez que vivemos com outros e falamos e brincamos e pedimos ou esperamos, outra parte de nós permanece oculta, porque se modifica, é movida por impulsos dados a cada circunstância, podem nos surpreender e também nos escapar: são nossos quereres sem fim, que sempre querem mais e que sofrem algumas vezes por não saber o que exatamente podem querer, nem o que de fato querem poder, ou melhor, o que suportam poder. “Estrelas, apagai vossa luz, apagai. / Que a vossa luz não veja, estrelas, o que vai / De negro e de profundo em meu desejo”, pensa Macbeth, após a proclamação do primogênito do rei como príncipe de Cumberlândia. Macbeth já é senhor de Glamis. Seu sucesso na guerra, simultaneamente à traição do senhor de Cawdor, lhe confere também esse título, já no início do drama. Com tal poderio, Macbeth está a um passo de ser rei, o oráculo das bruxas o acusam, Glamis, Cawdor e rei por fim, rei de toda a Escócia. “Tenho medo, no entanto, / Da tua natureza”, diz sua esposa, Lady Macbeth, “Está cheia, a fartar, / Do leite da ternura humana para achar / Um caminho mais curto. E tu queres ser grande / Não te falta ambição que em tua alma se expande / Mas tu não tens, Macbeth, a precisa maldade”. Macbeth, um homem terno, um guerreiro virtuoso. E a esposa não deixa de provocá-lo, assim como seus próprios desejos intimamente já o provocam, é só mais um passo, um passo que o coloca no conflito entre a coragem do soldado ambicioso e o medo que faz de seu poder o princípio de uma morte sem fim. Por isso o rei Duncan nunca pára de sangrar, por isso os mortos voltam, sempre voltam durante a peça para assombrar Macbeth e sua bela senhora. A loucura se torna a conversão de um poder que não mais se domina, porque dominado pelo medo de perdê-lo. Claro, o fato de se estar no poder não garante o governo, nem de si, nem de outros, e se o rei perde o domínio de si, sob o signo de um poder que o centraliza tanto na paz quanto na guerra, como manter soberanamente o governo dos outros, entre o céu e a terra? Profecia e ato se alternam e se complementam perfeitamente sob a égide de um destino sem autor, porque todos são atores de uma catástrofe em comum. Haverá redenção possível?
A tragédia Macbeth foi escrita por volta de 1611. O filme Macbeth de Polanski é de 1971. O filme está à altura da peça. De um realismo, é certo, mais realista do que a tragédia: o que a tragédia oculta, por vezes o filme mostra. As virtudes do teatro antigo não comprometem as do cinema, e o cinema quer mostrar cada vez mais o que pode. Polanski repete a beleza dos versos shakesperianos, abre cenas que parecem quadros que abrem pinturas, o belo e o terrível, e mostra o suficientemente para não trair a si mesmo e seu cinema contemporâneo, nem, por outro lado, comprometer a inteligência dramática do teatro de Shakespeare. Sem exatamente enumerar, penso serem os que seguem pontos fundamentais para um debate sobre o filme e a tragédia no nosso tempo: Se mais poder é poder mais, é possível suportar sempre o que se pode? As paixões, como a ambição e o medo, também não podem sobre nós a ponto de nem mais suportarmos poder, nem mais sabermos o que querer? A loucura do poder, nesse caso, não seria a conversão de um querer não poder mais, fadado à impossibilidade da reversão dos fatos, cujo único caminho acentua a contradição entre o ideal de nosso desejo e o real de não se poder desfazer o que foi feito? Se queremos do poder o começo de uma ação sempre adiante, à guisa de possibilidade sem fim, como aceitar o que já não podemos mudar, sem deixar de pensar no que ainda assim, de alguma maneira, o quisemos? “Esses atos não são para ser comentados / depois de feitos”, diz Lady Macbeth ao marido com as mãos ainda sujas de sangue, “pois nos farão tresloucados”.
Jason de Lima e Silva
Citações de SHAKESPEARE. Macbeth. Trad. Artur de Sales e J. Costa Neves. Rio de Janeiro: W.M. Jackson, 1970.