quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Fragmentos de um golpe. VI.

Já ouvi algumas vezes o comentário de não haver diferença entre ser de esquerda ou ser de direita na política, simplesmente porque todo o político é corrupto ou se corrompe no poder. Poder e corrupção retumbam como pleonasmo, ao passo que esquerda e direita soam como um apanágio sem efeito, na rejeição prévia da política. Essa opinião apressada serve de condição para um resultado intrigante de nossa democracia: são eleitos empresários, e não políticos. O caso de Doria em São Paulo. Notem, não que o empresário seja incompetente para virar político, sobretudo num sistema capitalista, mas a compreensão de sua atividade pública será de ordem privada: sobrepor o lucro de alguns à distribuição dos bens produzidos, investir nas habilidades do indivíduo mais do que educar para a autonomia, ampliar a renda no mercado financeiro no lugar de fortalecer economicamente o estado para os serviços públicos. Além da submissão ao par política-corrupção, há mais razões para apressadamente alguém supor o fim da dupla direita-esquerda entre nós: a abertura da Perestroika em 1986, a queda do muro de Berlim em 1988... Com o recente falecimento de Fidel Castro, um jornalista escreveu sobre a morte da esquerda. Quanta pressa para escrever! Por que reduzir o amplo sentido histórico da esquerda à experiência malograda ou democraticamente infeliz do socialismo no mundo? Se a esquerda morreu na história, por que haveria ainda pessoas, movimentos e partidos que defendem algumas pautas de seu legado? Qual a lógica de palavrear aos quatro ventos ser hoje no Brasil obrigatório ser de direita, tal como disse numa entrevista Olavo de Carvalho, cuja fama não o fez filósofo? Aliás, como ele consegue a façanha de atacar as ditaduras de esquerda e afirmar simultaneamente a obrigatoriedade de uma única via na política do país, um único horizonte? Mas por que, afinal, a oposição entre direita e esquerda permaneceria como a mais adequada para representar a estrutura e a dinâmica da política? No caso do Brasil, compreender tal distinção me parece tarefa urgente: saberemos de onde falamos ou com quem estamos quando nos posicionamos contra algo ou contra alguém. Mas vamos aos filósofos! Que nos deem alguma luz em tempos de trevas! Fernando Savater é um nome cuja reputação está à altura dos livros que nos tem deixado. Ano que vem, o pensador basco completa 70 anos de idade. Não são poucos seus livros, fora os artigos, entrevistas e conferências. Desperta e lê, publicado em 1998, chegou-me pelas mãos de um estudante. Tão fluente quanto variado em termos de assunto, encontro nesta obra uma resenha intitulada Esquerda e direita, que trata, por sua vez, de um livro de Norberto Bobbio, publicado quatro anos antes, chamado Direita e esquerda, razões e significados de uma distinção política. No auge de seus oitenta e quatro anos, em Direita e esquerda, Bobbio demonstra e descreve histórica e axiologicamente o sentido de tal distinção no vocabulário da política, justamente para preservá-la. Somente ao fim do livro, o pensador italiano afirma sempre ter se considerado um homem de esquerda e comenta, com uma pessoalidade não muito comum em seus escritos, que se ocupou da política por uma razão fundamental: o “desconforto diante do espetáculo de enormes desigualdades, tão desproporcionais quanto injustificadas, entre ricos e pobres, entre quem está em cima e quem está embaixo na escala social...”. Desconforto, claro, que nem todos sentem, e se o sentir, não necessariamente estudaremos ou faremos política. Mas Bobbio o sentiu e se dedicou a pensá-lo. Talvez também mantivesse consigo a ideia de Aristóteles de que uma cidade não seria feliz sem um cidadão feliz, e o contrário também seria verdadeiro: afinal, quem poderia ser feliz em um estado infeliz? em uma comunidade ou país nos quais dominasse a injustiça, o medo e a ganância?


Se Bobbio defende a distinção entre direita e esquerda, é porque considera o centro como medida entre os opostos e o fato de que a oposição não corresponda a conteúdos permanentes, mas (arriscaria eu dizer) a campos semânticos no interior dos quais os sentidos são ampliados, deslocados e redefinidos historicamente. É mais uma topologia do que uma ontologia política, comenta Bobbio, e cita Marco Revelli: “não se é de direita ou de esquerda no mesmo sentido em que se diz que se é ‘comunista’, ‘liberal’ ou ‘católico’”. Se topologia corresponde a lugar e não substância, razoável haver diferença entre uma esquerda liberal revolucionária oitocentista e uma esquerda social democrática. O fato é que como territórios do pensamento, a díade esquerda-direita representa ainda a dicotômica estrutura da política: esse é o argumento de Bobbio e ele é justificado pela tendência na história do pensamento político moderno de perceber a contraposição entre uma visão igualitária e horizontal, no caso da esquerda, e uma visão vertical e inigualitária, no caso da direita. O discurso de emancipação do outro e a luta contra o poder opressivo e os privilégios de casta, raça ou classe, através do qual se situa a esquerda e, em contrapartida, a defesa do passado, da herança e da tradição, como é habitual à formação da direita (daí provavelmente a exaltação dos brasões de família, a menção à glória dos antepassados, o apego às origens). Há naturalmente movimentos e partidos políticos que no centro se encontram, em razão de pautas e interesses eventualmente ajustáveis. Foi no centro que PMBD e PT se encontraram em 2010, por exemplo. Mas o projeto político Mais mudanças mais futuro na candidatura de Dilma em 2014 não teve coisa alguma a ver com o programa do PMDB Ponte para o futuro. A improbabilidade de concílio entre um e outro, aliás, foi uma das causas fundamentais para a usurpação do poder soberano ou, em outras palavras, para o golpe de estado na democracia brasileira. O próprio Temer o admite, em Nova York, num almoço na sede da American Society, no dia 21 de setembro deste ano, ao dizer que a recusa do programa de seu partido teria instaurado um processo de impeachment para efetivá-lo como presidente. Quem se importa (ou se importou) com pedaladas fiscais! À parte o fato, se é possível direita e esquerda se encontrarem no centro, em contrapartida, há movimentos e partidos que se avistam apenas na extremidade, pela negação do outro e afirmação absoluta de si, lá mesmo onde, no limite, o diálogo é interrompido pela ameaça e a política é substituída pela guerra. Igualdade e hierarquia, também é outra tendência para a distinção entre esquerda e direita. Mas se a igualdade se converte em princípio de um autoritarismo ou nivelamento da maioria, ser de esquerda significa, ainda, não aceitá-lo, quer dizer, não aceitar qualquer ditadura que o valha, de esquerda ou de direita. Então, o que significa ser de esquerda? Voltamos à pergunta de Claire Parnet a Gilles Deleuze em 1988. E para encerrar, Fernando Savater, quem educadamente pede licença, ao fim de sua resenha, para ser tendencioso: “ser de esquerda é não ser de direita. E a direita, seja qual for a justificativa partidária em que ela se ampare, consiste hoje (...) em utilizar a brutalidade criminosa e a mentira para atingir objetivos talvez louváveis em si mesmos; em alentar a discriminação social ou técnica em nome de argumentos científicos, nacionalistas ou religiosos; em fomentar o puritanismo paternalista em lugar de educar para a responsabilidade; em sacrificar qualquer consideração ou ternura humana em proveito do máximo desenvolvimento econômico, do triunfo da própria identidade cultural, da extensão do reino de Deus sobre a terra ou de qualquer outra causa. É de direita querer que os países sejam homogêneos, invulneráveis e ultraprodutivos a qualquer preço; a esquerda se resigna ao diferente, ao incerto e ao frágil, mas exige que nenhum ser humano esqueça a preocupação com os humanos, chave de sua própria humanidade”.

Jason de Lima e Silva

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Cinema & Filosofia

Blue Jasmine: o real e seu duplo


É possível viver sem ilusões? Se não, é razoável sustentar as mesmas sempre, durante toda a vida, sob o risco de certo disparate entre a convicção íntima e os fatos, o deslumbre e a frustração? Mais uma: quanto do real é possível suportar quando a desilusão se torna maior do que o prazer de iludir-se e deixar-se iludido? Perguntas sobre as quais por sorte nenhum filósofo detém o privilégio, afinal, quem já não pensou que tudo seria melhor se...? Ilusão: o se permanece preso nos labirintos da linguagem, como a condição de uma possibilidade não mais possível. A vida segue, o real não barganha, e desilusões não passam muitas vezes de ilusões que não podíamos evitar sobre algo ou alguém cujo sentido ou destino nunca seguramente nos pertenceu.

Vivian Leigh como Blanche Dubois,
em Um bonde chamado desejo, Elia Kazan, 1951,
com base na peça de Tennessee Williams, 1947,
fonte: http://maxseesmovies.blogspot.com.br/2010/12/47-streetcar-named-desire.html
Cate Blanchett em Blue Jasmine, W. Allen, 2013,
fonte: http://www.sonyclassics.com/bluejasmine/

        Blue Jasmine (2013) de Woody Allen conta a desilusão de Jasmine (Cate Blanchett) sob uma sequência de quedas: perde o marido, o filho, o patrimônio, o dinheiro, as amigas, quase tudo de uma vez. Mas não perde a pose, nem o impulso de mantê-la a qualquer custo, quando precisa tudo recomeçar. E para não perder um homem de boa posição, que casualmente surge e por quem se encanta, mantém-no iludido: sobre seu passado, seu trabalho, sobre quem realmente é. “Posso ter floreado alguns fatos”, comenta com sua irmã, “e omitido detalhes desagradáveis, mas os sentimentos, as ideias, o humor... não é isso o que sou? as pessoas não se reinventam?”. Reinventar-se aqui é uma tática para livrá-la de tudo o que foi e ainda é, já que nada lhe restou, senão a ilusão de que tinha coisas e era algo: a mulher de Hal (Alec Baldwin), o empresário bem sucedido de Manhattan, pai exemplar, homem sedutor, filantrópico picareta.
     Mas como surge essa personagem, Jasmine? Falando sem parar. Fala disparatadamente a uma senhora que sequer conhece, do avião ao aeroporto. Nada de mal nisso: quantas pessoas não monologam diante dos outros sem que precisem de ouvidos? Jasmine vai ao encontro da irmã, Ginger (Sally Hawkins), cujos genes eram piores do que os seus, segundo comentavam seus próprios pais. Quando chega ao endereço indicado em San Francisco, toda a sua elegância destoa do cenário ao redor, como acontece a personagem Blanche em Um bonde chamado desejo, de Tennesse Willians (1947): “Sua expressão é de incredulidade, e ela parece chocada”. Blanche e Jasmine jamais cogitaram o apelo às suas irmãs pobres. Blanche chega de Belle Rêve e Jasmine ouve Blue Moon desde quando conheceu Hal pela primeira vez. E se uma regula o desamparo pelo whisky, a outra prefere a vodca, mais uns remedinhos. Augie, o ex-marido de Ginger, não esconde o incômodo pelo aparecimento dessa irmã, e ele tem suas razões (mais adiante vemos o golpe que toma de Hal, quem subverte a sua sorte). Mas “o que ela entendia de finanças?”, pergunta Ginger, por impulso de zelo fraterno. “Bobagem, não me venha com essa!”, responde Augie: “Fica anos casada com um cara envolvido em fraude imobiliária e bancária, e vem me dizer que ela não sabia de nada. (...) quando ganhava diamante e peles ela olhava para o outro lado”.

Jeanette "Jasmine" (Cate Blanchett), Alec Bawdin (Hal),
Andrew Dice Clay (Augie)  e Sally Hawkins (Ginger), em Blue Jasmine/
Fonte: http://www.sonyclassics.com/bluejasmine/
 
          Técnica da ilusão: olhar para o outro lado. Não que Jasmine não soubesse quem era o marido ou que sua especialidade fosse os grandes golpes: ela apenas olhava para o outro lado. Clément Rosset publica em 1976 um ensaio sobre a ilusão: O real e seu duplo. “Na ilusão”, escreve ele, “quer dizer, na forma mais corrente de afastamento do real, não se observa uma recusa da percepção propriamente dita. Nela a coisa não é negada: mas apenas deslocada, colocada em outro lugar”. A percepção é atravessada pelos fantasmas do próprio desejo, ao passo que a realidade é vista como quem olha de soslaio algo incapaz de obscurecer a convicção sobre o que somos ou nos acontece. O iludido olha o que quer ver, e se olha para o outro lado é para enxergar apenas o que não se sobrepõe ao entusiasmo de sua fantasia. Pode até reconhecer algum inconveniente, mas não o associa a sua escolha. Aceita então o fato, mas não seus efeitos. Sabe do que se passa, mas não consente.
         A ação do filme se dá neste presente: morar com a irmã e seus dois filhos, compartilhar às vezes o espaço com o amante de Ginger e seus amigos. Mas esse presente é interrompido por reminiscências, cenas de um passado ainda recente. Os olhos de Jasmine então caem num lugar desconhecido, sua expressão muda, às vezes fala sozinha ou xinga alguém que não está na cena. E aos poucos seu drama nos é revelado. Uma de suas primeiras lembranças é na casa de campo: vemos Jasmine com suas amigas e seus respectivos maridos ricos, os quais se retiram do jardim com papéis em mãos, quando uma das mulheres comenta: “Eles vivem se escapando do departamento de Justiça”. Jasmine depois retruca: “Nunca sei dos negócios de Hal. Não tenho cabeça para esse tipo de coisa”. E uma amiga fala da expressão ultimamente famosa: chama-se “olhar para o outro lado” (to look the other way).


         Não se trata de não ver o que se mostra, mas de concentrar apenas no que não lhe afeta o desejo, medido pela ilusão daquilo por cuja posse não haveria infelicidade. Tanto via e sabia Jasmine que nada esconde dos filhos de Ginger, num bar. Bem curiosos pela reputação de loucuras da tia, e assustados ao mesmo tempo, ouvem-na contar como tudo lhe desmoronou rapidamente, a ansiedade, o medo da morte, os pesadelos, os remédios, o colapso nervoso: “eu suspeitava que nem tudo o que Hal fazia era cem por cento legítimo: tinha que ser idiota para não suspeitar que seu sucesso fenomenal era bom demais pra ser verdade”. Vejam, ela não pôde negá-lo, nem no presente, nem no passado: talvez até tenha se feito de idiota, e por isso mesmo não pôde encarar o que restou à sua frente. Entre a vida proveitosamente iludida e o cerco inexorável do real, a ação se vê paralisada, o passado repete o malogro, o presente está disperso e o futuro não se abre: o mundo se torna maior do que todos os sonhos juntos e o impacto da queda é proporcional à ascensão do mito inventado para si mesmo. Pois a ilusão duplica o que há e o que somos. “No par maléfico que une o eu a um outro fantasmático”, escreve Rosset, “o real não está do lado do eu, mas sim do lado do fantasma: não é o outro que me duplica, sou eu que sou o duplo do outro. Para ele o real, para mim a sombra”. Quem é Jasmine senão a sombra de uma ilusão que se tornou mais verdadeira que ela mesma? Senão o duplo de um outro perdido na memória, o fantasma de uma vida bem aproveitada? Talvez o único ato propriamente seu tenha se realizado na plenitude da vingança, o que dá justamente unidade a toda narrativa: eis o seu grande lance antes da bancarrota, quando não mais pôde afetivamente olhar para o outro lado. Mas como suportar as consequências deste feito sem volta?  Entre as ilusões de si e as desilusões do mundo, Jasmine chega em pedaços ao fim da história. Se ela mudou de nome porque “Jeanete não tinha brilho”, após a trágica peripécia que a persegue na memória e outra reviravolta no tempo contínuo de sua ação, Jasmine se torna blue, as ideias se confundem e as palavras se misturam. “Em cada esquina cai um pouco a tua vida / Em pouco tempo não serás mais o que és”, não canta Cartola? A ilusão da arte não duplica o mundo por um além redentor, nem duplica o que somos pela representação de um destino feliz. A ilusão da arte mostra no outro o que já está senão cindido, no mínimo é tenso em nós: que caminho percorremos quando há muitos outros lados possíveis, nenhum necessário e todos sem volta?

Jason de Lima e Silva



Artigo originalmente publicado na revista Subtrópicos, 23, Florianópolis: Editora da UFSC,  2015: 
https://issuu.com/ayrtonsilveira/docs/subtropicos_n23.

domingo, 27 de novembro de 2016

Fragmentos de um golpe. V.

Amigos brigaram por anos à frente, familiares perderam o gosto espontâneo da convivência, casais jamais encontraram o mesmo afeto. Inevitável. Política não é apenas um meio para agir e manter o poder, nem somente um território de decisão e enfrentamento a respeito do que nos interessa. É uma maneira também de sentir e compreender o mundo, de se apaixonar pelas coisas, de aceitar o que é estranho ou recusar o que não parece familiar, de considerar o outro como fim ou defender sempre e apenas o que é seu. Por isso o coração bate forte quando temos responder a juízos cheios de si pelo simples fato de não aguentarmos mais ouvir bobagens e não aceitarmos o que nos impõem como notícia, ideia ou regra de ação. Se metáforas ajudam, na pele da política vemos a pluralidade de opiniões e até mesmo a polarização de ideias, mas na sua carne, está a percepção. Acentuadas as diferenças no território epidérmico, reconhecemos de que músculos do tecido o outro se move. Lá também estão escondidas as suas paixões, a história de suas amarguras, os medos de adulto ou os afetos infantis. Mas fiquemos na superfície para entendermos o primeiro degrau do profundo. O terreno da política se movimenta segundo a trama das percepções e dos valores, cuja capilaridade ação e discurso revelam, nem sempre coincidindo um no outro, o que faz de nós humanos a mais fabulosa e contraditórias das espécies. Todas as brigas e intrigas que vivemos e testemunhamos nos últimos tempos, deu ao brasileiro, algo valioso: a chance de conhecer melhor com quem partilha o tempo e o espaço, e o quanto é necessário cultivar durante uma única vida o mesmo tempo e o mesmo espaço. Progressistas ou conservadores, comunistas ou reacionários, nas mais banais e vulgares dicotomias e qualificações reproduzidas, por ofensas públicas ou ressentimentos privados, uma díade permanece como sentido e urgência ao vocabulário da política: direita e esquerda. Permanece não para acentuarmos os extremos e deduzirmos a inexorabilidade de uma guerra civil, mas para sabermos de que lugar falamos ou somos mais impositivamente atacados. Os extremos se encontram quando se perde de vista o centro. Mas a díade se justifica para reconhecermos nossos horizontes de mundo. Na política, uma coisa é fundamental: que interesses favoreces quando és contra algo? por exemplo, a quem fizeram coro quando bateram suas imprecações as panelas reunidas? ter sido contra a corrupção não favoreceu o golpe parlamentar à custa da democracia e não favorece ainda mais os corruptos que também foram contra a corrupção? antes da usurpação do poder por meios legais, com a artilharia midiática avante, de que lado estávamos e de que lado permanecemos? O que afinal faz com que alguém seja de direita ou de esquerda? Aqui a opinião perde para o conceito. E perde não para a autoridade de um saber, mas para o estudo das próprias dúvidas ao longo da história do pensamento. Consultemos então um filósofo, na fabricação improvisada de seu conceito: Gilles Deleuze. 

fonte da imagem: http://sismuc.org.br

Quando no abcedário de 1988 ele chega a letra G e é perguntado pela jovem Claire Parnet sobre o que significa être de gauche (ser de esquerda), Deleuze diz não haver propriamente um governo de esquerda, embora possa um governo atender as exigências da esquerda, o que já demostra uma diferença. Para o filósofo há duas maneiras de se responder o que significa ser de esquerda. Primeiro, trata-se de uma questão de percepção. Aqui Deleuze usa a metáfora do endereço postal para ilustrar o que significa antes não ser de esquerda: parte-se de si mesmo, depois vem a rua onde se mora, a cidade, o país... e assim por diante. Parte-se de si mesmo numa situação privilegiada, embora se saiba que há perigos e não será sempre assim, afinal não é sensato aceitarmos as injustiças do mundo em nome da própria percepção, comenta o filósofo. Ser de esquerda significa partir do caminho contrário: o mundo, o continente europeu, a França... até se chegar à rua Bizerte e a mim, diz Deleuze. Por isso “os problemas do terceiro mundo estariam mais próximos do que os de nosso bairro”. “Não é uma questão de ser ou não uma boa alma”, apenas de percepção. Em segundo lugar, ser de esquerda corresponde ao devir minoria. “A esquerda nunca é maioria enquanto esquerda”. Por uma razão: a maioria pressupõe um padrão. No caso do Ocidente, diz Deleuze, o padrão é ser homem, adulto, macho, cidadão. Mas “a maioria jamais é alguém”, pois “o padrão é vazio, embora a maioria se reconheça nesse padrão”. A seu lado, continua Deleuze, estão “todos os devires que são minoria”. As mulheres não adquirem por natureza o ser mulher: há portanto um devir mulher. Como há um devir homem, ou um devir criança... “A esquerda é o conjunto de processos de devires minoritários”, “é saber que a minoria é todo mundo”, ao passo que a maioria é um padrão vazio. Por isso, conclui o pensador, não foram poucos os filósofos que desconfiaram da democracia. Lembrei neste ponto o caso de Sócrates e me surgiu uma pergunta: o devir filosófico de Sócrates não teria chegado a sua plenitude na velhice, quando na prisão musicava as fábulas de Esopo, pouco antes de tomar a cicuta, o veneno fatal, condenado justamente por uma democracia? Se pensar diferentemente se converte em doutrinação ou política partidária, não haveria aí um problema criado pelo padrão vazio de uma maioria cujos privilégios ainda se sonham ou não aceitam perder, e cujo sentido não pode durar para sempre, pelo devir de quem justamente pensa, e pensando, resiste?
                                                                                                                            Jason de Lima e Silva

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Fragmentos de um golpe. IV.

É PEC PAGUE OU MORRA
Fábrica ou masmorra
241, 746...
É o fim da carreira 
E quem quer sofrer?
Ocupa Minc Ocupa Escola
Ocupa para entender 
Sem culpa de fazer história
Sem medo de se arrepender
Resistência não é partido
É parte do coletivo
O contragolpe do ofendido
Para o que é público não perder




Pois se a mídia a massa leva
Que não nos faça de serva
Nem venha o parlamento
Com mais um mandamento
Para o pobre no apuro
Render o rico a juro
Já basta tanto salário
À injustiça do judiciário
Diga então ao sargento
Não haver mal ocupar
Nem é crime pensar 
Vale mais proteger
Quem por direitos ocupa
Para sonhar e escrever
Sem mordaça de arapuca
64 por 16
Repica corte e regresso
Só lamentamos o mérito
De ser luta outra vez

Jason de Lima e Silva 

fonte da imagem: http://www.brasil247.com

domingo, 25 de setembro de 2016

Fragmentos de um golpe. III.

É preciso lembrar a atualidade de Z. Z é um filme franco-argelino, dirigido por Costa Gravas, de 1969. Ele abre com imagens de brasões, medalhas e insígnias militares e cristãs. Ao fundo, a maravilhosa trilha de Míkis Theodorákis, um artista sempre politicamente engajado. A trilha fica mais baixa e ouvimos um discurso sobre a pulverização das vinhas para prevenir o aparecimento de fungos. Vemos uma ampla sala e militares sentados em carteiras, como se fosse uma escola militar ou algo do tipo. A doença das vinhas, diz o palestrante antes de passar a palavra ao general, aparece ao lado de outra doença: é uma doença ideológica que afeta os homens. O orador anuncia o próximo tópico, o tópico do general. Ouvimos os aplausos. A imagem congela e aparece a legenda: Qualquer semelhança com os fatos, ou pessoas vivas ou mortas, não é mera coincidência mas intencional. Uma advertência dos roteiristas. O que aconteceu lá naquele tempo? O que acontecerá na história do filme? O que acontece conosco atualmente? O filme corresponde a fatos reais da Grécia, antes do golpe de Estado (1967), em torno do assassinato do deputado Grigoris Lambrakis em 1963. Só ao fim compreendemos por que o nome Z, e o quão grave é, para a história de um povo, a tomada do poder político ilegitimamente: “não é mera coincidência”. “Tal como o fungo”, diz o general quando está com a palavra, “a doença ideológica deve ser combatida previamente”, e por isso “a pulverização dos homens é indispensável”. Primeiro nas escolas, depois nas universidades. Esse fungo é o que nos afasta de Deus e da Coroa, é um inimigo, diz o general, bastante convicto de suas ideias. “Com o aparecimento dos sistemas de ismos” (socialismo, anarquismo... comunismo), “as sombras se espalham sobre o sol. Deus se recusa a iluminar os vermelhos”. Por fim, ele anuncia a vinda de um inimigo: o político esperado por um grupo de militantes para se posicionar contra a instalação de mísseis americanos no território grego.



Cena do filme Z (Costa Gravas, 1969), com Yves Montand e Irene Papas,
baseado no romance homônimo de Vassillis Vassilikos, de 1963

Qual a lógica dos reacionários? Se queres a guerra, combata a paz. E a primeira medida para se combater a paz é inventar o inimigo, em nome de deus ou da democracia, ou de ambos se for o caso. René Dreifuss (já o citei: 1964, A conquista do estado, de 1981) fala de guerra psicológica através do rádio, da televisão, dos jornais, dos cartuns e dos filmes, a ponto de estimular "uma reação quase histérica das classes médias", segundo a doutrinação da elite orgânica contra “o comunismo, o socialismo... e a corrupção do populismo” e de “uma grosseira propaganda anticomunista”, antes e durante o golpe civil-militar de 1964. Um bom exemplo da grosseira invenção do inimigo aparece numa edição de julho de 1963 de O gorila, publicado pelas Forças Armadas. Depois de apresentarem o que julgavam ser o marxismo, os autores caracterizam o comunista: “Ele é aparentemente inofensivo... nunca se trai, sempre amigo, o mais sincero, o mais leal... até o dia em que ele o assassinará pelas costas, friamente... Eles matam frades, violam freiras, destroem igrejas”. É engraçado, não? Nada tão bizarramente atual. E seria de fato cômico se a ignorância quanto ao significado dos diferentes ismos não gerasse o ódio, o ódio não revertesse na estupidez necessária para a ofensa e a ofensa não fosse a razão suficiente para guerra. Como e por que razão conversar com o pior ignorante, aquele definido por Platão em seus apaixonantes diálogos: o que ignora a própria ignorância, o que nega não saber? E por isso mesmo permanece blindado por suas convictas opiniões. Como se fossem realmente próprias as suas ideias a respeito de si e do mundo.


Jason de Lima e Silva 

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Fragmentos de um golpe. II.

Mauro Lopes nomeia as quatro principais famílias do Basta! Fora Dilma! (Sobre as quatro famílias que decidiram derrubar um governo democrático). São elas: os Marinho (Organizações Globo), os Civita (Grupo Abril/Veja), os Frias (grupo Folha) e os Mesquita (Grupo Estado). Mas há outras com “mídias de segunda linha, como os Alzugaray (Editora Três/Isto é) e os Saad (Rede Bandeirantes), ou regionais, como os Sirotsky (RBS, influente no sul do país).” Não à toa, a mesma novela da vida real assola nossas mentes, sobretudo nos últimos quatro ou cinco anos, em todos os canais e redes, segundo uma lógica maniqueísta que reduziu a crítica política ao ódio dos revoltados (um ódio notadamente feito, ou seja, estrategicamente fabricado). Tal lógica se explicita também, e cada vez mais, na operação Lava Jato. O bom mocinho contra o império do satanás. E para ser vencido o mal, a ordem do devido processo legal foi subvertida sob a presunção evidente da culpabilidade: primeiro o acusado vira notícia, em seguida a opinião pública o condena, depois o juiz assina a sentença e, por fim, a polícia o prende. Ou o conduz coercitivamente. Neste caso, a distinção entre os termos não altera a prática autoritária, cuja evidência fica cada vez mais clara para outros países. E é curioso, mas não espantoso para quem estuda um pouquinho de história, ver como algumas coisas voltam, mas voltam, claro, na diferença e na particularidade de seu acontecimento. Voltam as contradições de classe, volta sempre o poder econômico de uma minoria sobre a maioria, mas também volta o fenômeno de uma tirania da maioria, tal como Alexis de Tocqueville escreve a respeito do perigo d’ A democracia americana, de 1835. E a nossa república democrática brasileira, afinal de contas, seria capaz de virar uma tirania? Quem duvida? As oitocentas e quatorze páginas de René Dreiffuss, 1964, A conquista do Estado, revelam não apenas a enorme paciência de um historiador e cientista político para ler e escrever tanto e tão bem, com seus organogramas, documentos e inumeráveis notas de rodapé. Revelam o que permite à teoria compreender, com o esforço que lhe é próprio, o que foi 1964, donde a razão de seu subtítulo: ação política, poder e golpe de classe. A mim, que neste momento o leio, e bem devagar para não perder um pensamento, tenho a impressão de assistir um noticiário crítico do presente, cujo horizonte me assusta. Ele mostra como foi formado o IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) no início dos anos 1960, entre Rio e São Paulo. O que unificava seus militantes, diz o estudioso, “eram suas relações econômicas multinacionais e associadas, o seu posicionamento anticomunista e a sua ambição de readequar e reformular o Estado”. René Dreiffuss fala de um verdadeiro assalto à opinião pública por parte do IPES, em razão de seu relacionamento direto com importantes jornais, rádios e televisões nacionais. Cita os Diários Associados (de Assis Chateaubriand), a Folha de São Paulo (os Frias), o Estado de São Paulo e o Jornal da Tarde (os Mesquita), cita J. Dantas do Diário de notícias, a TV Record e a TV Paulista, o Jornal do Brasil, o Correio do povo do Rio Grande do Sul e ademais cita, vejam que surpresa, O Globo, das Organizações Globo do grupo Roberto Marinho, sem falar na influente Rádio Globo. Mas vamos ler o autor (reparem, por favor, as aspas dentro das aspas!): “Eram também ‘feitas’ em O Globo notícias sem atribuição de fonte ou indicação de pagamento e reproduzidas como informação fatual. Dessas notícias, uma que provocou um grande impacto na opinião pública foi que a União Soviética imporia a instalação de um Gabinete Comunista no Brasil, exercendo todas as formas de pressões internas e externas para aquele fim.” E o capítulo de nosso terror na vida política e social dos anos 1960 estava apenas começando, com a demonização do comunismo e a articulação dos militares contra João Goulart. Quanta verdade não se inventa por aí! E fora da novela de nossa vida real, vemos o espectador indignado contra a corrupção de um único partido, concentrado na vingança absoluta do bem contra o mal, enquanto escorre ao fosso, dia após dia, os seus direitos políticos e sociais.

Jason de Lima e Silva 


Cena do filme O processo de Orson Welles, de 1962,
baseado no livro homônimo de Franz Kafka, de 1925 

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Fragmentos de um golpe. I.

Quando alguém fala ter havido um golpe político no país, pode parecer, à primeira vista, exagero. Afinal, não vemos tanques nas ruas nem chefes de governo assassinados. Neste ponto, não nos custa ler ou ouvir quem entende para entender as coisas. Carlos Barbé diferencia o golpe de Estado da guerrilha e da guerra revolucionária. Se a guerrilha desgasta até o limite as forças armadas e policiais a serviço do Estado, o golpe “é executado não apenas através de funcionários do Estado (...) mas mobiliza até elementos que fazem parte do aparelho estatal”. Por isso, o Congresso Nacional e os dispositivos constitucionais podem servir de meio e princípio. Mas para o golpe ter êxito, diz Pasquino mais adiante, é preciso “ocupar e controlar os centros de poder tecnológico do Estado, tais como as redes de telecomunicações, o rádio, a TV, as centrais elétricas, os entroncamentos ferroviários e rodoviários”, o que permite “o controle dos órgãos do poder político” (vide o verbete “Golpe de Estado” do Dicionário de política, escrito com N. Bobbio e N. Matteucci, de 1983). Os jornais, as revistas e os noticiários de TV, os mais divulgados e vendidos no país, não cansaram de dizer o mesmo: Fora Dilma! Basta! As manifestações reuniram os honestos contra os corruptos e o pato da FIESP pululou aqui e acolá a farsa de uma revolta contra os impostos: por quais interesses? No jogo de poder das informações e comunicações, quem são mesmo as famílias em razão das quais nos encontramos, mais uma vez, frente a essa destinação política de nossos tristes trópicos? E aqui vale a leitura de Mauro Lopes, dos Jornalistas livres, sobre As quatro famílias que decidiram derrubar um governo democrático:

(http://www.cartacapital.com.br/politica/reflexoes-a-quente-sobre-o-golpe)

Tudo para salvar o país contra o bem geral. 

Jason de Lima e Silva

F. de Goya y Lucientes, Contra o bem geral, Desastres de guerra, c. 1810-1815


sexta-feira, 22 de abril de 2016

A política do repulsivo


Na noite do dia 17 de abril, quando a câmara votava o impedimento presidencial, alguns amigos me diziam já ter vomitado. Era claro uma força de expressão. Fraco meu estômago, evitei ver o que acontecia e, quando o fiz, consternou-me o bizarro teatro montado: a razão jurídica do processo perdida na retórica de tudo o que é meu pelo sim, menos deus, que passou a ser de todos para salvar o país. Dei-me conta de ter a política brasileira se convertido num problema de intestinos. A indigestão me pareceu imediatamente a mais natural das reações, contando ainda haver, mais do que petróleo, alguma reserva de sensibilidade entre nós.
Na Crítica da faculdade de julgar (1790), Kant admite uma representação artística do feio. Uma única exceção: a feiura que gera asco. O objeto se confundiria com a sensação de repúdio e o prazer de sentir e pensar livremente a beleza da obra seria interditado. Ainda que culturas diferentes tenham relações distintas com o asco e a beleza, talvez pudéssemos nos perguntar o quanto e por que a nossa política hoje é capaz de produzir mal-estar no seu espectador, dentro e fora do país. Seríamos sempre e somente espectadores do repugnante? Outros sentimentos, tais como o ódio, não dariam alguma naturalidade ao asco, a ponto mesmo de transformá-lo em prazer, por uma lógica do horror? 

Honoré Daumier, Câmara dos deputados, 1834 (litografia)

            Ouçamos Jair Bolsonaro. Criar polêmica e abrir a boca para exterminar o outro sem entender sequer do que fala, é sinal hoje de força e caráter. Para muita gente. Isso não seria tão facilmente possível sem a produção midiática e política de um colapso que, por sua vez, favorece o aparecimento de redentores da ordem e da moralidade. E é tal força e caráter que cita de saída Eduardo Cunha, como um nome que entrará para a história. Resta-nos saber que historiadores honrarão esse nome. Mas Bolsonaro conseguiu ir mais longe: ele ressaltou a memória de Carlos Alberto Brilhante Ustra. Um nome que seu filho ao fundo repetiu com o movimento dos lábios, como se invocasse a sagração de um ídolo messiânico. Bolsonaro com isso realmente se torna um mito. Um mito de pavor não apenas para Dilma, mas para toda sociedade brasileira. O coronel Ustra foi chefe do DOI-CODI (1970-1973) e há registro de mais de 300 torturados sob suas ordens. Lutavam, aliás, por democracia. O artigo de Carla Jiménez de El país dá uma boa ideia de quem foi o coronel e do que foi capaz durante a ditadura. Devotá-lo abre um caminho repudiável para nossa cultura, à custa do que também a história lembra para não ser repetido.
            Mas de onde vem essa necessidade de produzir e recomeçar sempre e novamente a dor no outro? O sofrimento não escolhido, como uma doença, já não seria um mal suficiente à condição humana? Que tipo de prazer se oculta neste processo de impeachment? Se confiarmos nos discursos que prometem mudar o destino do país, não encontraríamos, entre deus e tantos familiares, o semblante do coronel Ustra? Quem suportaria o lugar do torturado, ou da torturada, nos tempos do coronel e neste momento histórico?

Jason de Lima e Silva