domingo, 27 de novembro de 2016

Fragmentos de um golpe. V.

Amigos brigaram por anos à frente, familiares perderam o gosto espontâneo da convivência, casais jamais encontraram o mesmo afeto. Inevitável. Política não é apenas um meio para agir e manter o poder, nem somente um território de decisão e enfrentamento a respeito do que nos interessa. É uma maneira também de sentir e compreender o mundo, de se apaixonar pelas coisas, de aceitar o que é estranho ou recusar o que não parece familiar, de considerar o outro como fim ou defender sempre e apenas o que é seu. Por isso o coração bate forte quando temos responder a juízos cheios de si pelo simples fato de não aguentarmos mais ouvir bobagens e não aceitarmos o que nos impõem como notícia, ideia ou regra de ação. Se metáforas ajudam, na pele da política vemos a pluralidade de opiniões e até mesmo a polarização de ideias, mas na sua carne, está a percepção. Acentuadas as diferenças no território epidérmico, reconhecemos de que músculos do tecido o outro se move. Lá também estão escondidas as suas paixões, a história de suas amarguras, os medos de adulto ou os afetos infantis. Mas fiquemos na superfície para entendermos o primeiro degrau do profundo. O terreno da política se movimenta segundo a trama das percepções e dos valores, cuja capilaridade ação e discurso revelam, nem sempre coincidindo um no outro, o que faz de nós humanos a mais fabulosa e contraditórias das espécies. Todas as brigas e intrigas que vivemos e testemunhamos nos últimos tempos, deu ao brasileiro, algo valioso: a chance de conhecer melhor com quem partilha o tempo e o espaço, e o quanto é necessário cultivar durante uma única vida o mesmo tempo e o mesmo espaço. Progressistas ou conservadores, comunistas ou reacionários, nas mais banais e vulgares dicotomias e qualificações reproduzidas, por ofensas públicas ou ressentimentos privados, uma díade permanece como sentido e urgência ao vocabulário da política: direita e esquerda. Permanece não para acentuarmos os extremos e deduzirmos a inexorabilidade de uma guerra civil, mas para sabermos de que lugar falamos ou somos mais impositivamente atacados. Os extremos se encontram quando se perde de vista o centro. Mas a díade se justifica para reconhecermos nossos horizontes de mundo. Na política, uma coisa é fundamental: que interesses favoreces quando és contra algo? por exemplo, a quem fizeram coro quando bateram suas imprecações as panelas reunidas? ter sido contra a corrupção não favoreceu o golpe parlamentar à custa da democracia e não favorece ainda mais os corruptos que também foram contra a corrupção? antes da usurpação do poder por meios legais, com a artilharia midiática avante, de que lado estávamos e de que lado permanecemos? O que afinal faz com que alguém seja de direita ou de esquerda? Aqui a opinião perde para o conceito. E perde não para a autoridade de um saber, mas para o estudo das próprias dúvidas ao longo da história do pensamento. Consultemos então um filósofo, na fabricação improvisada de seu conceito: Gilles Deleuze. 

fonte da imagem: http://sismuc.org.br

Quando no abcedário de 1988 ele chega a letra G e é perguntado pela jovem Claire Parnet sobre o que significa être de gauche (ser de esquerda), Deleuze diz não haver propriamente um governo de esquerda, embora possa um governo atender as exigências da esquerda, o que já demostra uma diferença. Para o filósofo há duas maneiras de se responder o que significa ser de esquerda. Primeiro, trata-se de uma questão de percepção. Aqui Deleuze usa a metáfora do endereço postal para ilustrar o que significa antes não ser de esquerda: parte-se de si mesmo, depois vem a rua onde se mora, a cidade, o país... e assim por diante. Parte-se de si mesmo numa situação privilegiada, embora se saiba que há perigos e não será sempre assim, afinal não é sensato aceitarmos as injustiças do mundo em nome da própria percepção, comenta o filósofo. Ser de esquerda significa partir do caminho contrário: o mundo, o continente europeu, a França... até se chegar à rua Bizerte e a mim, diz Deleuze. Por isso “os problemas do terceiro mundo estariam mais próximos do que os de nosso bairro”. “Não é uma questão de ser ou não uma boa alma”, apenas de percepção. Em segundo lugar, ser de esquerda corresponde ao devir minoria. “A esquerda nunca é maioria enquanto esquerda”. Por uma razão: a maioria pressupõe um padrão. No caso do Ocidente, diz Deleuze, o padrão é ser homem, adulto, macho, cidadão. Mas “a maioria jamais é alguém”, pois “o padrão é vazio, embora a maioria se reconheça nesse padrão”. A seu lado, continua Deleuze, estão “todos os devires que são minoria”. As mulheres não adquirem por natureza o ser mulher: há portanto um devir mulher. Como há um devir homem, ou um devir criança... “A esquerda é o conjunto de processos de devires minoritários”, “é saber que a minoria é todo mundo”, ao passo que a maioria é um padrão vazio. Por isso, conclui o pensador, não foram poucos os filósofos que desconfiaram da democracia. Lembrei neste ponto o caso de Sócrates e me surgiu uma pergunta: o devir filosófico de Sócrates não teria chegado a sua plenitude na velhice, quando na prisão musicava as fábulas de Esopo, pouco antes de tomar a cicuta, o veneno fatal, condenado justamente por uma democracia? Se pensar diferentemente se converte em doutrinação ou política partidária, não haveria aí um problema criado pelo padrão vazio de uma maioria cujos privilégios ainda se sonham ou não aceitam perder, e cujo sentido não pode durar para sempre, pelo devir de quem justamente pensa, e pensando, resiste?
                                                                                                                            Jason de Lima e Silva