quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Fragmentos de um golpe. VI.

Já ouvi algumas vezes o comentário de não haver diferença entre ser de esquerda ou ser de direita na política, simplesmente porque todo o político é corrupto ou se corrompe no poder. Poder e corrupção retumbam como pleonasmo, ao passo que esquerda e direita soam como um apanágio sem efeito, na rejeição prévia da política. Essa opinião apressada serve de condição para um resultado intrigante de nossa democracia: são eleitos empresários, e não políticos. O caso de Doria em São Paulo. Notem, não que o empresário seja incompetente para virar político, sobretudo num sistema capitalista, mas a compreensão de sua atividade pública será de ordem privada: sobrepor o lucro de alguns à distribuição dos bens produzidos, investir nas habilidades do indivíduo mais do que educar para a autonomia, ampliar a renda no mercado financeiro no lugar de fortalecer economicamente o estado para os serviços públicos. Além da submissão ao par política-corrupção, há mais razões para apressadamente alguém supor o fim da dupla direita-esquerda entre nós: a abertura da Perestroika em 1986, a queda do muro de Berlim em 1988... Com o recente falecimento de Fidel Castro, um jornalista escreveu sobre a morte da esquerda. Quanta pressa para escrever! Por que reduzir o amplo sentido histórico da esquerda à experiência malograda ou democraticamente infeliz do socialismo no mundo? Se a esquerda morreu na história, por que haveria ainda pessoas, movimentos e partidos que defendem algumas pautas de seu legado? Qual a lógica de palavrear aos quatro ventos ser hoje no Brasil obrigatório ser de direita, tal como disse numa entrevista Olavo de Carvalho, cuja fama não o fez filósofo? Aliás, como ele consegue a façanha de atacar as ditaduras de esquerda e afirmar simultaneamente a obrigatoriedade de uma única via na política do país, um único horizonte? Mas por que, afinal, a oposição entre direita e esquerda permaneceria como a mais adequada para representar a estrutura e a dinâmica da política? No caso do Brasil, compreender tal distinção me parece tarefa urgente: saberemos de onde falamos ou com quem estamos quando nos posicionamos contra algo ou contra alguém. Mas vamos aos filósofos! Que nos deem alguma luz em tempos de trevas! Fernando Savater é um nome cuja reputação está à altura dos livros que nos tem deixado. Ano que vem, o pensador basco completa 70 anos de idade. Não são poucos seus livros, fora os artigos, entrevistas e conferências. Desperta e lê, publicado em 1998, chegou-me pelas mãos de um estudante. Tão fluente quanto variado em termos de assunto, encontro nesta obra uma resenha intitulada Esquerda e direita, que trata, por sua vez, de um livro de Norberto Bobbio, publicado quatro anos antes, chamado Direita e esquerda, razões e significados de uma distinção política. No auge de seus oitenta e quatro anos, em Direita e esquerda, Bobbio demonstra e descreve histórica e axiologicamente o sentido de tal distinção no vocabulário da política, justamente para preservá-la. Somente ao fim do livro, o pensador italiano afirma sempre ter se considerado um homem de esquerda e comenta, com uma pessoalidade não muito comum em seus escritos, que se ocupou da política por uma razão fundamental: o “desconforto diante do espetáculo de enormes desigualdades, tão desproporcionais quanto injustificadas, entre ricos e pobres, entre quem está em cima e quem está embaixo na escala social...”. Desconforto, claro, que nem todos sentem, e se o sentir, não necessariamente estudaremos ou faremos política. Mas Bobbio o sentiu e se dedicou a pensá-lo. Talvez também mantivesse consigo a ideia de Aristóteles de que uma cidade não seria feliz sem um cidadão feliz, e o contrário também seria verdadeiro: afinal, quem poderia ser feliz em um estado infeliz? em uma comunidade ou país nos quais dominasse a injustiça, o medo e a ganância?


Se Bobbio defende a distinção entre direita e esquerda, é porque considera o centro como medida entre os opostos e o fato de que a oposição não corresponda a conteúdos permanentes, mas (arriscaria eu dizer) a campos semânticos no interior dos quais os sentidos são ampliados, deslocados e redefinidos historicamente. É mais uma topologia do que uma ontologia política, comenta Bobbio, e cita Marco Revelli: “não se é de direita ou de esquerda no mesmo sentido em que se diz que se é ‘comunista’, ‘liberal’ ou ‘católico’”. Se topologia corresponde a lugar e não substância, razoável haver diferença entre uma esquerda liberal revolucionária oitocentista e uma esquerda social democrática. O fato é que como territórios do pensamento, a díade esquerda-direita representa ainda a dicotômica estrutura da política: esse é o argumento de Bobbio e ele é justificado pela tendência na história do pensamento político moderno de perceber a contraposição entre uma visão igualitária e horizontal, no caso da esquerda, e uma visão vertical e inigualitária, no caso da direita. O discurso de emancipação do outro e a luta contra o poder opressivo e os privilégios de casta, raça ou classe, através do qual se situa a esquerda e, em contrapartida, a defesa do passado, da herança e da tradição, como é habitual à formação da direita (daí provavelmente a exaltação dos brasões de família, a menção à glória dos antepassados, o apego às origens). Há naturalmente movimentos e partidos políticos que no centro se encontram, em razão de pautas e interesses eventualmente ajustáveis. Foi no centro que PMBD e PT se encontraram em 2010, por exemplo. Mas o projeto político Mais mudanças mais futuro na candidatura de Dilma em 2014 não teve coisa alguma a ver com o programa do PMDB Ponte para o futuro. A improbabilidade de concílio entre um e outro, aliás, foi uma das causas fundamentais para a usurpação do poder soberano ou, em outras palavras, para o golpe de estado na democracia brasileira. O próprio Temer o admite, em Nova York, num almoço na sede da American Society, no dia 21 de setembro deste ano, ao dizer que a recusa do programa de seu partido teria instaurado um processo de impeachment para efetivá-lo como presidente. Quem se importa (ou se importou) com pedaladas fiscais! À parte o fato, se é possível direita e esquerda se encontrarem no centro, em contrapartida, há movimentos e partidos que se avistam apenas na extremidade, pela negação do outro e afirmação absoluta de si, lá mesmo onde, no limite, o diálogo é interrompido pela ameaça e a política é substituída pela guerra. Igualdade e hierarquia, também é outra tendência para a distinção entre esquerda e direita. Mas se a igualdade se converte em princípio de um autoritarismo ou nivelamento da maioria, ser de esquerda significa, ainda, não aceitá-lo, quer dizer, não aceitar qualquer ditadura que o valha, de esquerda ou de direita. Então, o que significa ser de esquerda? Voltamos à pergunta de Claire Parnet a Gilles Deleuze em 1988. E para encerrar, Fernando Savater, quem educadamente pede licença, ao fim de sua resenha, para ser tendencioso: “ser de esquerda é não ser de direita. E a direita, seja qual for a justificativa partidária em que ela se ampare, consiste hoje (...) em utilizar a brutalidade criminosa e a mentira para atingir objetivos talvez louváveis em si mesmos; em alentar a discriminação social ou técnica em nome de argumentos científicos, nacionalistas ou religiosos; em fomentar o puritanismo paternalista em lugar de educar para a responsabilidade; em sacrificar qualquer consideração ou ternura humana em proveito do máximo desenvolvimento econômico, do triunfo da própria identidade cultural, da extensão do reino de Deus sobre a terra ou de qualquer outra causa. É de direita querer que os países sejam homogêneos, invulneráveis e ultraprodutivos a qualquer preço; a esquerda se resigna ao diferente, ao incerto e ao frágil, mas exige que nenhum ser humano esqueça a preocupação com os humanos, chave de sua própria humanidade”.

Jason de Lima e Silva

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Cinema & Filosofia

Blue Jasmine: o real e seu duplo


É possível viver sem ilusões? Se não, é razoável sustentar as mesmas sempre, durante toda a vida, sob o risco de certo disparate entre a convicção íntima e os fatos, o deslumbre e a frustração? Mais uma: quanto do real é possível suportar quando a desilusão se torna maior do que o prazer de iludir-se e deixar-se iludido? Perguntas sobre as quais por sorte nenhum filósofo detém o privilégio, afinal, quem já não pensou que tudo seria melhor se...? Ilusão: o se permanece preso nos labirintos da linguagem, como a condição de uma possibilidade não mais possível. A vida segue, o real não barganha, e desilusões não passam muitas vezes de ilusões que não podíamos evitar sobre algo ou alguém cujo sentido ou destino nunca seguramente nos pertenceu.

Vivian Leigh como Blanche Dubois,
em Um bonde chamado desejo, Elia Kazan, 1951,
com base na peça de Tennessee Williams, 1947,
fonte: http://maxseesmovies.blogspot.com.br/2010/12/47-streetcar-named-desire.html
Cate Blanchett em Blue Jasmine, W. Allen, 2013,
fonte: http://www.sonyclassics.com/bluejasmine/

        Blue Jasmine (2013) de Woody Allen conta a desilusão de Jasmine (Cate Blanchett) sob uma sequência de quedas: perde o marido, o filho, o patrimônio, o dinheiro, as amigas, quase tudo de uma vez. Mas não perde a pose, nem o impulso de mantê-la a qualquer custo, quando precisa tudo recomeçar. E para não perder um homem de boa posição, que casualmente surge e por quem se encanta, mantém-no iludido: sobre seu passado, seu trabalho, sobre quem realmente é. “Posso ter floreado alguns fatos”, comenta com sua irmã, “e omitido detalhes desagradáveis, mas os sentimentos, as ideias, o humor... não é isso o que sou? as pessoas não se reinventam?”. Reinventar-se aqui é uma tática para livrá-la de tudo o que foi e ainda é, já que nada lhe restou, senão a ilusão de que tinha coisas e era algo: a mulher de Hal (Alec Baldwin), o empresário bem sucedido de Manhattan, pai exemplar, homem sedutor, filantrópico picareta.
     Mas como surge essa personagem, Jasmine? Falando sem parar. Fala disparatadamente a uma senhora que sequer conhece, do avião ao aeroporto. Nada de mal nisso: quantas pessoas não monologam diante dos outros sem que precisem de ouvidos? Jasmine vai ao encontro da irmã, Ginger (Sally Hawkins), cujos genes eram piores do que os seus, segundo comentavam seus próprios pais. Quando chega ao endereço indicado em San Francisco, toda a sua elegância destoa do cenário ao redor, como acontece a personagem Blanche em Um bonde chamado desejo, de Tennesse Willians (1947): “Sua expressão é de incredulidade, e ela parece chocada”. Blanche e Jasmine jamais cogitaram o apelo às suas irmãs pobres. Blanche chega de Belle Rêve e Jasmine ouve Blue Moon desde quando conheceu Hal pela primeira vez. E se uma regula o desamparo pelo whisky, a outra prefere a vodca, mais uns remedinhos. Augie, o ex-marido de Ginger, não esconde o incômodo pelo aparecimento dessa irmã, e ele tem suas razões (mais adiante vemos o golpe que toma de Hal, quem subverte a sua sorte). Mas “o que ela entendia de finanças?”, pergunta Ginger, por impulso de zelo fraterno. “Bobagem, não me venha com essa!”, responde Augie: “Fica anos casada com um cara envolvido em fraude imobiliária e bancária, e vem me dizer que ela não sabia de nada. (...) quando ganhava diamante e peles ela olhava para o outro lado”.

Jeanette "Jasmine" (Cate Blanchett), Alec Bawdin (Hal),
Andrew Dice Clay (Augie)  e Sally Hawkins (Ginger), em Blue Jasmine/
Fonte: http://www.sonyclassics.com/bluejasmine/
 
          Técnica da ilusão: olhar para o outro lado. Não que Jasmine não soubesse quem era o marido ou que sua especialidade fosse os grandes golpes: ela apenas olhava para o outro lado. Clément Rosset publica em 1976 um ensaio sobre a ilusão: O real e seu duplo. “Na ilusão”, escreve ele, “quer dizer, na forma mais corrente de afastamento do real, não se observa uma recusa da percepção propriamente dita. Nela a coisa não é negada: mas apenas deslocada, colocada em outro lugar”. A percepção é atravessada pelos fantasmas do próprio desejo, ao passo que a realidade é vista como quem olha de soslaio algo incapaz de obscurecer a convicção sobre o que somos ou nos acontece. O iludido olha o que quer ver, e se olha para o outro lado é para enxergar apenas o que não se sobrepõe ao entusiasmo de sua fantasia. Pode até reconhecer algum inconveniente, mas não o associa a sua escolha. Aceita então o fato, mas não seus efeitos. Sabe do que se passa, mas não consente.
         A ação do filme se dá neste presente: morar com a irmã e seus dois filhos, compartilhar às vezes o espaço com o amante de Ginger e seus amigos. Mas esse presente é interrompido por reminiscências, cenas de um passado ainda recente. Os olhos de Jasmine então caem num lugar desconhecido, sua expressão muda, às vezes fala sozinha ou xinga alguém que não está na cena. E aos poucos seu drama nos é revelado. Uma de suas primeiras lembranças é na casa de campo: vemos Jasmine com suas amigas e seus respectivos maridos ricos, os quais se retiram do jardim com papéis em mãos, quando uma das mulheres comenta: “Eles vivem se escapando do departamento de Justiça”. Jasmine depois retruca: “Nunca sei dos negócios de Hal. Não tenho cabeça para esse tipo de coisa”. E uma amiga fala da expressão ultimamente famosa: chama-se “olhar para o outro lado” (to look the other way).


         Não se trata de não ver o que se mostra, mas de concentrar apenas no que não lhe afeta o desejo, medido pela ilusão daquilo por cuja posse não haveria infelicidade. Tanto via e sabia Jasmine que nada esconde dos filhos de Ginger, num bar. Bem curiosos pela reputação de loucuras da tia, e assustados ao mesmo tempo, ouvem-na contar como tudo lhe desmoronou rapidamente, a ansiedade, o medo da morte, os pesadelos, os remédios, o colapso nervoso: “eu suspeitava que nem tudo o que Hal fazia era cem por cento legítimo: tinha que ser idiota para não suspeitar que seu sucesso fenomenal era bom demais pra ser verdade”. Vejam, ela não pôde negá-lo, nem no presente, nem no passado: talvez até tenha se feito de idiota, e por isso mesmo não pôde encarar o que restou à sua frente. Entre a vida proveitosamente iludida e o cerco inexorável do real, a ação se vê paralisada, o passado repete o malogro, o presente está disperso e o futuro não se abre: o mundo se torna maior do que todos os sonhos juntos e o impacto da queda é proporcional à ascensão do mito inventado para si mesmo. Pois a ilusão duplica o que há e o que somos. “No par maléfico que une o eu a um outro fantasmático”, escreve Rosset, “o real não está do lado do eu, mas sim do lado do fantasma: não é o outro que me duplica, sou eu que sou o duplo do outro. Para ele o real, para mim a sombra”. Quem é Jasmine senão a sombra de uma ilusão que se tornou mais verdadeira que ela mesma? Senão o duplo de um outro perdido na memória, o fantasma de uma vida bem aproveitada? Talvez o único ato propriamente seu tenha se realizado na plenitude da vingança, o que dá justamente unidade a toda narrativa: eis o seu grande lance antes da bancarrota, quando não mais pôde afetivamente olhar para o outro lado. Mas como suportar as consequências deste feito sem volta?  Entre as ilusões de si e as desilusões do mundo, Jasmine chega em pedaços ao fim da história. Se ela mudou de nome porque “Jeanete não tinha brilho”, após a trágica peripécia que a persegue na memória e outra reviravolta no tempo contínuo de sua ação, Jasmine se torna blue, as ideias se confundem e as palavras se misturam. “Em cada esquina cai um pouco a tua vida / Em pouco tempo não serás mais o que és”, não canta Cartola? A ilusão da arte não duplica o mundo por um além redentor, nem duplica o que somos pela representação de um destino feliz. A ilusão da arte mostra no outro o que já está senão cindido, no mínimo é tenso em nós: que caminho percorremos quando há muitos outros lados possíveis, nenhum necessário e todos sem volta?

Jason de Lima e Silva



Artigo originalmente publicado na revista Subtrópicos, 23, Florianópolis: Editora da UFSC,  2015: 
https://issuu.com/ayrtonsilveira/docs/subtropicos_n23.