sábado, 13 de outubro de 2018

A roda


Foto: Leandro Couri


ao Mestre Moa do Katendê

Acontece de o céu girar e se erguer como chapa metálica
As mãos suam
E é possível sentir o coração bater na garganta
Ainda reverbera no tímpano o riso das doces criaturas
Quem são elas? O que foram a vida inteira?
Como arrancaram suas almas pelos calcanhares
E deixaram ocos os seus corpos de fantoches?
Não há como acordar uma massa de gente
Apressada no meio dos ruídos e distúrbios
Todos querem algo a mais
“Que seja a guerra”
Assim dizem
“A cidade já virou ruína
E nós já estamos mortos”
Por isso toda a carnificina não lhes basta
De humanos ou animais
Mas o grito ainda é humano
Quem poderia socorrê-lo?
O traquejo, o canto, a rasteira
A graça, o praça e chega o tal
Parou a ginga da roda
Escorre o sangue entre as frestas
São de pedras as lápides
E de silêncio o berimbau
Jason de Lima e Silva


segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Fragmentos de um golpe. X.

"Uma faísca, uma fagulha, uma alma insegura".
Racionais Mc's, A praça (Cores & Valores, 2014)

Quem já não viu muita gente convicta perder amigos, mas não as convicções? Quem não viu justamente o convicto ficar mais perdido do que o amigo que se foi? A escolha política diz muito de quem perde e de quem dá a perdida. Pessoas públicas representam valores públicos. Podemos repensar o que falamos, mas não desdizer o dito, nem desfazer o feito. E se o espaço público é ocupado por mentiras, evasivas, boçalidades e frases tão vazias de sentido quanto cheias de preconceitos, não há muita saída senão desaparecer, desaparecer de tudo o que alimenta a máquina de violações. O desaparecimento é estratégico, às vezes a única saída possível nos meios dos quais fazemos parte. Não precisa ser total, nem para sempre, mas pode sofrer longos intervalos. Que seja esclarecido ou deixe dúvidas, pouco importa, o intolerável por vezes é recusado como uma separação às pressas, sem pormenores ou aviso prévio. A tática é sempre evitar os círculos de soberba de uma classe que bajula o rico para rir do pobre, despreza o servidor público e é seu mandatário, promete militarizar a sociedade civil para salvá-la, insiste na religião para substituir a ética, na violência para suprimir a política, na troça para encobrir a burrice. Evitar, manter distância, sobretudo quando o estômago é sensível à estupidez e a alma tem a fome dos clássicos, e não vê graça fácil no mundo. Somos em boa medida aquilo que fazemos, mas também o que representamos: como e com quem nós aparecemos. Não dá para dizer que somos apenas o que sentimos, nem muito menos nossas melhores intenções.
James Ensor, Masks fighting over a hanged man, 1891
A banalidade de uma truculência dá lugar ao pior de nossa humanidade e estorva a luta para o que vem a ser plural, inclusivo e democrático, sobretudo em um país historicamente racista, excludente e autoritário. Osso duro de roer é a casca da ignorância, por mais verniz de cultura que queira ostentar. Não tem ideia nem livro que entre na cabeça se a alma permanece fechada. Produzir efeitos à custa do mau gosto é a contrapartida do fascismo à cultura que lhe falta, a cultura das letras, a cultura da periferia também. Mas essa performance convence uma pá de perdidos, não pela verdade do discurso, mas pela pessoalidade da chacota, pela fanfarronice aleatória, pelo gesto do esculacho. As consequências e os perigos desse exibicionismo não se calculam. Por trás do riso abobado vibra a infâmia: a sensação de ser de fato superior, nem que se mitifique a história ou se despreze a ciência. Essa atitude de desprezo pelo que não reconhece elevado, ou singularmente distinto, é uma forma de barbárie. É a barbárie fundada na reatividade do homem mediano, que pode até ser cordial, mas com o cacoete do zombeteiro, porta fechada para a alteridade. Não lhe basta a vida sem idolatrias e não lhe cansa o amor de seu duplo narciso, o herói que sonhou ser. O exagero serve então de propaganda. Como vencer o messianismo bélico na esfera pública sem uma cautelosa esquiva ética? Mas é preciso manifestar o incômodo, a recusa, e o silêncio também o diz, a via que sobra para situar o limite quando o discurso de nada adianta, sequer as perguntas, as dúvidas, porque as premissas para o fascista são invioláveis e as conclusões tiradas a seu critério. Que recusemos e nos espantemos com tudo isto que não seduz, não forma, não dá frutos, nem sai do lugar, mas ao contrário trava, neutraliza, estigmatiza e ligeiramente aponta os dedos: não para as coisas urgentes e necessárias, mas para se livrar do outro, interrompê-lo, condená-lo. Tortura, ditadura, misoginia, que fazeis numa democracia? Nessa incitação à guerra para prometer a paz, não haveria uma fobia de classe pronta sempre a matar, se for preciso, para viver? Mas que vida afinal?

Jason de Lima e Silva

Revisão e interlocução: Kamila Caldaz

Publicado como artigo no porta da Carta Maior com o título Esquiva ética em tempos sombrios:
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Esquiva-etica-em-tempos-sombrios/4/41855

domingo, 13 de maio de 2018

Carta sobre Política aos estudantes

Publicado como artigo em: Le Monde Diplomatique/Brasil

Fui convidado para falar um pouco sobre política para vocês e aproveitei para lhes escrever esta carta. A política é um terreno amplo e complexo, com seu vocabulário próprio, como qualquer saber ou ciência. É um terreno movediço também, porque mexe conosco, move nossos humores, agita nossas convicções e preferências, e as questões estão aí: a luta do feminismo, o perigo do fascismo, democracia e golpe de Estado, ser de esquerda ou ser de direita, progressista ou conservador. Mas onde começaria a política? Antes de ser uma ciência ela parece ser uma atividade, porque alguns se dedicam à política, vivem da política, muitas vezes são presos, perseguidos e mesmo morrem por causa da política. Mas seria uma atividade restrita aos profissionais que chamamos políticos ou a política pertence a todos nós desde sempre? Condenar todos os políticos como se fosse uma coisa só,  “farinha do mesmo saco”, não seria condenar a política e a nossa chance de se politizar e resistir contra tudo o que vem de cima para baixo? Por que, além de tantas outras atividades, teríamos de nos preocupar com a política? Faria alguma diferença para a vida saber o que acontece no governo do país ou da escola? Sugiro três sentidos para o termo política: primeiro, o sentido comunitário de pertencimento, segundo, o sentido perceptivo de realidade, terceiro, o sentido mais restrito de mediação de conflitos e interesses. Tentarei ser breve o suficiente para não entediá-los, nem confundi-los.

Vejam vocês: fomos recebidos no mundo por braços e por seios que nos alimentaram. Mas fomos recebidos também por uma família e por um idioma, uma língua. A linguagem indica o que queremos e o que não queremos. Nem sempre traduz nossos sentimentos, mas pode comunicar o perigo iminente ou o objeto de nosso desejo à vista. A palavra é uma extensão de nosso próprio corpo, como são os gestos, os gestos que são fala em potencial e potência de expressão. Fazemos coisas no mundo, mas o mundo também faz coisas conosco: ele nos dá um nome que não escolhemos, uma família que não conhecíamos, um idioma que aprendemos. Pertencemos porque somos pertencidos. Ter um idioma não é o mesmo que termos uma casa ou um carro. Ter um idioma é ser pertencido, é fazer parte de algo que pertence tanto a mim quanto aquele que não sabe ler. Não importa quantos idiomas se fale. Importa muito mais é o que se fala. Se alguém conta vantagem e mentira em cinco idiomas para ganhar dinheiro, que mérito há? Pertencemos porque nos inclinamos naturalmente a aprender as coisas, o significado das coisas, assim como nos inclinamos a buscar quem gostamos, e podemos até gostar de quem apenas tolerávamos. O filósofo Aristóteles definiu o ser humano como animal que tem linguagem e por isso é um animal político, o zoon politikon. Aristóteles quer dizer com isso que somos não apenas capazes de falar, mas de dar nome e sentido às coisas. E mais do que isso: a linguagem também serve para separar o que convém do que não convém, o justo do injusto e a “participação comunitária nesses valores forma a casa familiar e a cidade”. Portanto, o que nos faz políticos por natureza é a constatação de pertencermos antes de sermos qualquer coisa que queiramos ser. Mas não pertencemos sempre de braços abertos. Há um custo na sociabilidade. Por três rápidos motivos. Primeiro, porque não é sempre que queremos ser vistos. Ser visto é ser lembrado, requisitado, exigido. Segundo, porque precisamos de um tempo para nós, para fazer coisas, coisas que exigem concentração, como desenhar ou ler, ou para não fazer coisa alguma. Terceiro, porque há perigos na vida urbana: no trânsito, por exemplo. A vida social nos dá prazer, claro, mas também nos dá algum trabalho. Por isso é preciso sabedoria para conciliar a vida pública e a vida privada, não se gastar toda vitalidade no mundo de fora para encontrar o vigor no mundo de dentro. Mesmo que nos viremos bem na dinâmica social, mesmo que nos julguem simpáticos, simpatia também cansa, assim como cansa manter qualquer aparência: o malvadão, o divertido, o fechado. Alguém insistentemente e metodicamente simpático corre o risco de parecer chato. Ninguém, claro, é essencialmente chato ou simpático. Nós nos tornamos quem somos, não viemos prontos, a sociedade pode ou não nos ajudar nessa tarefa, e essa é uma tarefa também política. Se a cidade prolifera apenas concessionárias, oficinas, revendedoras de carros, pouca inspiração dará a quem quer estudar música, simplesmente porque não se encontra no seu bairro um único conservatório ou escola de música. Esse é o primeiro sentido de política que proponho aqui: o sentido comunitário de pertencimento a um grupo social. Um grupo social que é bem diferente da organização comunitária das abelhas. Nós podemos fazer nossas leis, assim como podemos recusar as que nos são escritas. Obedecemos, a contragosto muitas vezes, e exigimos razões para obedecer, como bem observou o filósofo espanhol Fernando Savater. Savater, que está vivo entre nós, escreveu um livro sobre ética e um sobre política para seu filho, que tinha a idade de vocês. Em um certo momento, esse pensador diz que política “não é mais do que o conjunto das razões para obedecer e das razões para sublevar”, no sentido aqui de resistir, revoltar-se, rebelar-se. Nosso pertencimento grupal, nosso impulso gregário, nem sempre é pacificamente garantido. Um outro filósofo, bem mais próximo de nós, Kant, diz que os humanos agem segundo uma lei da própria natureza: a insociável sociabilidade.

Stuart Davis, Artistas contra a guerra e o fascismo, 1936
Mas política tem a ver também com uma forma de percepção da realidade, ou melhor, percepção de realidades. Pode alguém olhar para as casas da periferia como gente que não deu certo na vida ou, ao contrário, como efeito de uma sociedade que está longe de acertar. Um vê a miséria como fato natural, porque sempre haverá pobres e ricos, azarados e sortudos. Outro suspeita que essa diferença não tem relação com sorte ou azar, nem com habilidades naturais para sobreviver na selva de pedras e asfalto. Há razões econômicas, razões de governo, razões de mercado, razões de acúmulo de bens e dinheiro, razões de gente que não quer dar razões aos miseráveis que na maior parte das vezes não têm voz, emprego e muito menos representação política. Pensar e agir politicamente é deixar de lado um pouco nossos pequenos caprichos ou grandes vaidades, para considerar não apenas o que queremos para nossa vida, mas o fato de que outros também querem, e precisam. Por isso, uma ideia muito importante na origem da discussão sobre política é a ideia do bem-comum. Tem gente de um lado que ainda precisa de muito para poder querer alguma coisa, tem gente de outro lado que não tem limites para querer e poder sempre mais: bens e dinheiro. Essa percepção também serve de base para aceitarmos ou recusarmos coisas relacionadas à cidade, seus grandes problemas, mas seus pequenos problemas que viram grandes problemas no dia-a-dia. Se ficarmos quietos, se não nos reunirmos por um coletivo, se não formos para a rua protestar, o transporte público continuará como está, o ônibus sem ar-condicionado no verão, sem cortinas para a proteção do sol, lotado sempre e parado no mesmo lugar. Continuaremos dependendo dos ônibus ou entulhando ainda mais a cidade de carros, continuaremos presos nos carros. O modo como nos posicionamos frente ao que acontece pode ser neutro ou político. Pode ser por hábito de obedecer (e mesmo de sofrer). Mas pode, ao contrário, se pôr no lugar da crítica, da recusa às coisas tais como são: o sofrimento próprio, o sofrimento alheio. Logicamente, quem recusa tem de estar pronto também para propor um caminho, ou perguntar se ele não é possível. Fazer mais pontes para mais carros ou pensar a ampliação do transporte público, o uso do mar, o subsolo para metrôs ou estacionamentos? Colocar os problemas, discuti-los com outros, é ocupar o domínio que os filósofos políticos chamam de esfera pública. Na esfera pública temos de lidar com opiniões tão diversas quanto contraditórias, muitas vezes diretamente ofensivas, que agridem não apenas o nosso gosto, mas nosso próprio modo de vida. E ainda estamos no meio de uma guerra de informações, a mídia se alimenta dessa esfera pública, muitas vezes ajuda a destrui-la, produz manchetes ambíguas, capas fake news, edições de planos e imagens que contam a história que interessa a quem paga para nos fazer acreditar naquilo. Uma coisa é certa: não dá para confiar total e imediatamente nas notícias, sobretudo nos grandes jornais do país. Um bom exercício político é desconfiar, coçar a pulga atrás da orelha antes de acreditar no que aparece na revista ou na TV. Não é nem duvidar dos fatos, mas da interpretação dos fatos. Vale sempre investigar fontes diferentes sobre o mesmo assunto, se realmente interessa o assunto, se realmente ele é útil, ou não passa de mais uma fofoca ou de mais uma razão para odiar e não para compreender. É preciso aplicar aquele crivo socrático, o filtro do velho Sócrates, o filósofo ateniense que recomendava antes de espalhar qualquer novidade ou reproduzir uma notícia, primeiro, saber se é verdade, segundo, se fará bem a quem diz, terceiro, se lhe será útil.

Em um sentido mais restrito e rigoroso da palavra, política é mediação, a arte de mediação dos conflitos e dos interesses em uma sociedade, por isso é também uma arte do exercício do poder, a atividade de governo. Para mediar os conflitos é que nós inventamos instituições tais como a assembleia e o tribunal. A própria ideia de democracia, como forma de governo fundada no demos, no povo, só pôde existir por meio dessas instituições. Essas instituições são artificiais, quer dizer, são inventadas para ordenar a ordem das ações humanas, para comandar nossos impulsos e paixões, não apenas para se sobreviver, mas para se bem conviver. Instituições que no tempo dos gregos formavam a polis, palavra em grego que quer dizer cidade, donde nos chegou a palavra política. Política é o lugar a partir do qual se decidem e se julgam as coisas públicas publicamente, ou seja, as coisas que comprometem a todos, que podem afetar uma grande parte ou uma pequena parte, como regular os impostos, aprovar ou não uma reforma, reconhecer as diferenças de gênero, para que o empresário não se sobreponha ao operário, o branco ao negro, o homem à mulher. Por que então pensar a política, ou pensar em política, se há outras coisas que parecem mais interessantes, como os esportes, o estudo das línguas, o cinema. Eu diria: para entendermos como somos governados: como governam nosso tempo, nossos corpos, nossa aparência, nossos sonhos, nosso desejo, nossa força de trabalho. Como somos governados não apenas pelos políticos, mas pelo discurso de uma empresa, pelas informações da imprensa ou da propaganda, pelas orientações médicas e psicológicas. Vejam só, Aristóteles diferenciou três tipos de poderes: o poder do pai, o poder despótico e o poder político. O primeiro se exerce para o interesse do pai, o segundo, para o senhor, o terceiro, para os governantes e governados. Se o poder só atende o interesse dos governantes acontece uma degeneração da política, uma corrupção não dos políticos, nem de suas consciências, mas do próprio sentido da política. Um exemplo de perversão ou corrupção da política é a democracia se tornar ditadura (para os gregos, seria a tirania). Não esqueçamos que Hitler foi eleito democraticamente. Mas além desses poderes, o paterno, o despótico e o político, podemos pensar nos poderes do médico, do psicólogo e mesmo no poder de um professor. Michel Foucault, um pensador de nosso tempo, não mais vivo, disse que na sociedade moderna o grande desafio do poder é nos adaptar ao processo de desenvolvimento econômico. Ou seja, é nos adaptar, adaptar cada um e cada uma de nós, para produzir, atingir metas, aumentar o lucro da empresa e estar contente com tudo isso, ou pelo menos não sofrer a ponto de parar na linha de produção, como se, nas palavras de Foucault, os governantes de hoje fossem os psicólogos e o povo seus pacientes (O mundo é um grande hospício, 1973). Uma das questões mais importantes da vida é saber como governar nossa própria vida. A outra é compreender como nos governam. Essa é a diferença entre ética e política. Às vezes se leva uma vida inteira para aprender uma e entender a outra. Não há problema. Não precisamos ter pressa para a liberdade, nem sofrer de ansiedade para ter o que poderíamos chamar de senso político ou consciência política. Mas é bom estar atento. As grandes transformações são lentas. Começam por uma atenção ao que se passa conosco, mas também pelo que acontece em torno de nós.

Georges Rouault, Os fugitivos ou O êxodo, 1911
Por fim, eu gostaria de aprofundar essa distinção que julgo importante: entre ética e política. Assim entramos um pouco mais nesse terreno movediço da política, sem nos afogarmos em polêmicas ou juízos apressados. Ambas, ética e política, tem a ver com o universo das ações e das palavras, universo que nos faz humanos, singulares e plurais, como indivíduos e como povos. Na cidade nos tornamos visíveis para o outro fisicamente, somos corpos, corpos muitas vezes dentro de máquinas, como dentro de carros e ônibus. O modo como andamos ou falamos já nos coloca no espaço entre outros. Quanto às máquinas, elas não nos livram de nossa responsabilidade de cuidar dos pedestres e dos ciclistas enquanto dirigimos. Nossas ações e palavras, nosso jeito de ser e de se comunicar, aparecem no espaço público. Isso é o que chamamos de caráter, que tem a ver com o temperamento, mas também com nossa educação, com nossos gostos e interesses, porque eles nunca vem prontos: aprendemos a gostar do que gostamos de aprender. Quando ouço música, sozinho ou com meus amigos, estou no campo da ética, porque exercito minha liberdade de escolha. Mas se alguém do condomínio ouve regularmente a todo o volume a sua música, estou no campo da política, e a obrigação de uma multa por exemplo representa o uso da força para medir um querer, quando faltou ética. Essa invasão de um gosto, essa sobreposição de um interesse de uma pessoa em relação a outra, pode acontecer no gesto de um olhar, pela insistência ou perversão de um olhar por exemplo, e as mulheres irão senti-lo como os homens não o imaginam. Isso não apenas pode, mas deve ser debatido publicamente. Por quê? Para que o querer de um olhar não se sobreponha ao querer de uma mulher não ser encarada na rua por um desconhecido. Aqui estamos no campo da política. É pelas ações e pelas palavras que contamos histórias, amamos e rimos, mas também é por ações e palavras que declaramos nossa revolta por algo injusto, o limite do poder exercido por quem conhecemos ou não conhecemos. Se nos falta a palavra, o diálogo, estamos fadados à violência. A política é uma atividade de governo não apenas para sobrevivermos no meio de uma guerra de carros, máquinas, armas e informações. A política serve para criarmos condições de se bem viver, viver sem medo, sem medo de experimentar e se aperfeiçoar, sem medo de ser feliz. Não haveria graça na vida se não pudéssemos ampliar nossa compreensão, e aos poucos moldar nosso corpo e nossa alma, esculpir sempre, porque o tempo passa e é mais fácil perder os talentos do que cultivá-los. Assim também a inteligência e a sensibilidade. A ética nos mostra o que é possível querer e fazer diante do que não podemos ter ou ser, por isso existe a consciência moral. A política justifica o poder como princípio para todos os quereres, por isso existe o Estado. A ética procura um princípio através do qual se possa garantir uma boa ação, ou a mais justa possível. A política procura a ação mais eficaz para manter a convivência, e o menos injustamente possível. Para a ética se trata de aprender a viver em paz consigo mesmo. Por isso uma pessoa ética exige mais de si que dos outros, para ser melhor do que se é, sem comparar ou impor seus talentos. Para a política se trata de evitar a guerra, por isso o político precisa considerar as diferenças dentro de uma mesma cidade, as condições econômicas e étnicas, para ajustar não apenas os direitos e benefícios, mas também as obrigações dos indivíduos e dos grupos sociais. O movimento de ocupação dos sem teto só existe porque tem muitas famílias sem casa e tem muito juiz que acumula imóveis e ganha auxílio moradia. Como canta Mano Brown, “eu sei, você sabe o que é frustração, máquina de fazer vilão” (Jesus chorou). Essas contradições precisam ser enfrentadas por nós para que a cidade não vire um palco de guerra, e mais do que isso, para que a cidade possa dar condições para que ninguém tenha medo de ser livre, nem tenha medo da liberdade do outro, e se possível encontre tempo para desenvolver seus gostos e interesses, sem cair facilmente no tédio de uma vida automática, na frustração de um sonho ou na angústia de não ser alguém de sucesso. A ética é uma arte da vida, a política uma técnica de convivência. Algumas sociedades não precisam de Estado, mas precisam de política, ou seja, precisam de um governo, uma condução para construir e manter suas comunidades, para defendê-las da natureza, da fome e do frio, mas também precisam de política para negociar as regras impostas por outros povos ou para receber um homem que não encontrou mais lugar no seu país, como o exilado, o refugiado ou o preso político. Aristóteles, já bastante citado aqui, tem um livro sobre ética e outro sobre política. Para esse filósofo da Macedônia de quatro séculos antes de Cristo, ambas, ética e política, fariam parte das ciências práticas, ou seja, representariam o conhecimento das ações humanas no mundo. A finalidade de ambas seria a felicidade, o bem pessoal e o bem comum. Não haveria cidade feliz sem pessoas felizes. Mas também não haveria quem pudesse ser feliz em uma cidade infeliz. E o que seria uma cidade infeliz hoje em dia? Provavelmente aquela com mais problemas do que meios de resolvê-los. Uma cidade que não dá parques, bibliotecas, conservatórios, institutos de ensino público, mobilidade urbana, casa e terra, cinema e música. Mas não dá sobretudo esperança para as pessoas serem mais do que são e terem o mínimo para serem alguma coisa. Uma cidade infeliz não dá esperança porque deixa as pessoas esperando por muito tempo, por toda a vida: esperam o transporte público, o emprego decente, o atendimento à saúde, a vaga na universidade. Vocês conhecem a música do Chico Buarque, Pedro pedreiro? “Pedro pedreiro fica assim pensando / Assim pensando o tempo passa e a gente vai ficando pra trás / Esperando, esperando, esperando / Esperando o sol, esperando o trem /Esperando aumento desde o ano passado para o mês que vem”. Bom, espero que vocês tenham gostado dessa conversa e que pensando nós não fiquemos para trás de nós mesmos, nem tenhamos que passar outros para trás, como se fôssemos obrigados a chegar sempre na frente. Deixo meu abraço.

Jason de Lima e Silva

quinta-feira, 12 de abril de 2018

A escolha de Aquiles nossa de cada dia

Luís Felipe Bellintani Ribeiro
(Professor de Filosofia da UFF)

O Brasil, como dizia o Tim Maia, é aquele país estranho em que traficante se vicia, puta se apaixona e cafetão sente ciúmes.
Só pra manter a tradição, vamos atualizar a lista: o Brasil é aquele país estranho em que ministro da corte suprema, responsável por julgar de fora as lides segundo o critério da constitucionalidade, entra de cabeça nas refregas e, qual uma das partes querelantes, se mete a corrigir a constituição, como se legislador constituinte fosse.
Brasil-il-il-il-il!!!!
Uma dessas figuraças – gênio da raça – descobriu recentemente estupefato – óóóóó – que a justiça brasilis é sobremaneira morosa, que os poderosos ficam impunes e só quem vai pra cadeia é preto, pobre, puta (o quarto “p” ele não confessaria, mas acrescentamos por nossa conta: e petista).
Não diga?
Como dizem aqui na minha terra: demorô, playboy.
E o que faz sua excelência diante de inédita descoberta?
Para compensar a leniência, que é a dele mesmo e de sua galera do judiciário, manda pra cadeia, com celeridade e truculência ímpares – misto de Ferrari do Neymar com trator do Ronaldo Caiado – um dos poucos políticos do entranho país que em 500 anos de história tentaram fazer alguma coisa pelos pretos, pelos pobres e pelas putas.
Não. Para o pretor brazuca, “poderoso” no estranho país não são os filhos do Roberto Marinho, não são os donos do Itaú e do Bradesco, não é o Lemann, que enche as burras vendendo cerveja de milho para a patuleia, não é a plutocracia rentista, não é o latifúndio grileiro e desmatador, não é o pato da FIESP, nem o mandarinato estatal, do qual seus colegas de toga fura-teto-constitucional são o exemplo escarrado. 
Não.
Esses, para ele, são a “opinião pública”.
“Poderoso”, no léxico do ilustre magistrado, é um retirante nordestino que fez a vida como torneiro-mecânico no ABC paulista e que chegou ao comando do Poder Executivo por ter à mancheia exatamente aquilo que falta a todos os supramencionados: voto popular.
Eu sou do tempo em que voto popular era o critério-mor pelo qual se podia apensar ao substantivo “poder” o adjetivo “legítimo”. Aliás, o “pública” de “opinião pública” significa o mesmo que o “popular” de “voto popular”. Não precisa ser PhD em filologia clássica para intuir o populus por detrás, essa coisa suja e fedida (aos sentidos delicados da elite) chamada povo, mas que continua, até onde eu saiba, ao menos em países pretensamente democráticos – olha aí o povo de novo, agora na forma do grego dêmos – a ser o único fator, a despeito da sujeira e do fedor, de algum embelezamento dessa coisa terrível que é o poder.
Ô meritíssimo, se era pra rasgar a constituição em nome da opinião pública, então o senhor teria não só de dar o habeas corpus pro Lula, que isso já é o que diz a constituição, mas dar-lhe algum plus a mais, tipo aquele que Sócrates mandou, com sua costumeira ironia, na Apologia de Platão: “viver no Pritaneu às expensas do erário até o fim da vida”. Afinal, nem eu nem o senhor nem ninguém neste estranho país continuaria a ser, depois de tanto William Bonner e Rede Globo sentando o pau, reforçados recentemente até com Padilha e Netflix, o cara mais popular da história do país.
Sem mistificação, seu doutor, o cara é o mais popular da história por uma razão nada mística. Porque atacou de frente o principal problema deste estranho país: a desigualdade social. Eis a verdadeira “corrupção”, ilustre juiz, da nossa sociedade, eis a verdadeira imoralidade: que uma economia de tal magnitude albergue, como se fosse a coisa mais natural do mundo, a fome e a miséria. Eu, que não sou cristão nem nada, sinceramente não entendo como uma elite sedizente cristã pôde por 500 anos dormir sono angelical enquanto a imensa maioria dos concidadãos mal se havia com o de comer.
Mas, vá lá, a vida é dura e o tempo é curto, cada um pensa no seu, ok. Ninguém é obrigado a ver o mundo como uma madre Tereza de Calcutá e tudo mundo tem o direito de entregar-se a seu consumismozinho, de orbitar em torno do gozo de seu umbigo, ok. O próprio povão detesta política e decide por puro cálculo pragmático, daí de novo o porquê da imensa popularidade do “cara”. Ok, até entendo que alguém não morra de amores pelo governante sob cujo governo a vida dos mais ferrados ascendeu a um patamar mínimo de dignidade. Mas chegar a odiar visceralmente alguém que traz esse feito no currículo? Que tipo de afeto é esse? Sou socrático, ingenuamente socrático, e tendo a atribuir todo mal a algum tipo e grau de ignorância. Mas, sinceramente, o ódio hiperbólico ao Lula que um naco da sociedade deste estranho país ostenta, ao preço mesmo de sua própria ruína econômica e social, me faz cogitar seriamente da hipótese da perversidade. Perversidade nua e crua: que se danem os mais ferrados. Morram os sujos e fedidos.

Miséria, Isidre Nonell Monturiol, 1904
Fonte: http://www.ciudadpintura.com


Adoram, os desta elite colonizada, tudo que cheire a isteites e zoropa e não se dão conta da pagação de mico que é apresentar-se nas praças turísticas overseas com esse passivo às costas legendado em letras garrafais na testa: representante bobo-alegre de uma republiqueta que sequer é capaz de matar a fome de seus cidadãos. E lá vai o bobo-alegre todo pimpão com suas sacolinhas de bugigangas gringas deitar falação contra o Brasil na primeira rodinha de iguais, como se não tivesse a nada a ver com isso.
Idiotas, não percebem que o chique Fernando Henrique com seu entreguismo, além do inglês e francês mal falados, nunca trouxe respeitabilidade ao país. Foi o monoglota de Caetés, retor de prol e psicagogo insuperável, que começou enfim a trazê-la, porque nenhum país será respeitável aos olhos dos outros países enquanto figurar, salvo por razões cataclísmicas, em mapas da fome e quejandos.
Por que haveria um francês de respeitar um país por ser ele governado por um simulacro de francês?
Haveria de respeitá-lo, óbvio, no dia em que fosse governado por um dos seus e para os seus.
Mas deixa eu mudar o rumo dessa prosa, meu leitor, que sinto estar se tornando deveras moralista e rancorosa.
Acredito que toda postura propriamente ética começa por rechaçar a baba e o dedo em riste moralista. Começa numa tolerância infinita para com outrem e na afeição a pensamentos, palavras e realidades complexos, refratários a tratamentos simplistas.
Toda postura propriamente ética começa por não encher a boca para falar: é-t-i-c-a. Podem apostar – é empírico, não apriorístico – por trás de todo moralista empertigado há sempre um depravado inconfessável. As pessoas propriamente éticas são sempre compreensivas e tolerantes, como Buda, Sócrates, Epicuro, Zenão de Cício, Cristo, Madre Teresa de Calcutá e Papa Francisco.
Perdoem-me os leitores: é a raiva por terem prendido injustamente meu presidente, depois de terem derrubado injustamente minha presidenta.
(Querido e querida).
A injustiça, como a inveja, é uma merda.
Deixemos de lado toda idealização otimista quanto a eventuais instintos altruístas do ser humano e voltemos à vaca fria da órbita umbilical que rege inexoravelmente toda ação desse bicho incorrigível, segundo uma visão antropológica tão pessimista quanto realista.
E aí chegamos finalmente ao título do presente post.
A “escolha de Aquiles” é um tema clássico e, como tal, sempre atual e atualizável.
Fala de uma disjunção, em termos lógicos.
Ou ou.
De uma encruzilhada, numa imagética da condição (trágica) própria da existência: ter de decidir por um caminho em detrimento de outro, como a gente faz em cada instante da vida, dando-se ou não conta disso.
A mãe de Aquiles, a nereida Tétis, apresentou-lhe a encruzilhada: ou ia ele à guerra em Troia e enchia-se de glória e renome (kléos), ao preço de abandonar a vida violentamente na flor da juventude, ou ficava em casa gozando de vida longeva até a morte tardia não menos doce que a vida.
Todos sabemos qual foi a escolha do herói, que não chega bem a ser uma escolha, mas um simples assentimento no destino, já que a segunda opção implicaria em Aquiles não vir a ser Aquiles e, na ausência, em tempos arcaicos, de um subjectum feito de arbítrio que pudesse salvaguardar ainda alguma identidade, essa opção seria simplesmente incogitável.

www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details.aspx?objectId=3082660&partId=1
Thetis trying to turn Achilles immortal. Thetis holding Achilles by his rig. After Victor Janssens, c.1700. 
Ademais, se Aquiles não tivesse ido à guerra e brilhado sob a aura da ação bélica, faltaria a Homero a matéria-prima de seu canto, faltaria à Grécia simplesmente Homero, seu educador, e faltaria ao Ocidente simplesmente a Grécia, seu berço.
Talvez o mundo fosse até melhor – sejamos humildes para admiti-lo – sem Aquiles, sem Homero, sem a Grécia e sem o Ocidente.
Mas ao amante com um mínimo de amor fati, e deixando de lado todo juízo quanto ao “melhor” para ficar apenas com o juízo estético, essa ideia é, para dizer o mínimo, insuportável.
E o que isso tem a ver com nosso tema inicial?
Tudo.
Vamos combinar: essas excelências togadas midiáticas e esses seguradores de microfone da Globo devem estar todos faceiros e cheios de si com os tapinhas nas costas, os sorrisinhos e os rapapés que estão a receber nos corredores e salões da casa-grande (e da Casa Branca), mas será que a vaidade e o medo turvam-lhes mesmo a visão a ponto de não perceberem como seus nomes hão de figurar nos livros de História após suas mortes?
Vejam: falo de uma perspectiva egocêntrica e vaidosa mesmo.
Daqui a 50 anos – vá lá, 100, para o caso de quem me lê ser jovenzinho – eu estarei morto, tu, meu leitor, estarás morto, Lula estará morto, Merval Pereira estará morto, os irmãos Marinho estarão mortos, Sérgio Moro estará morto.
Eu e provavelmente meu leitor jazeremos incógnitos sob nossa mãe primeira, Gaia, livres de glória, mas também de opróbrio, mas qual será o kléos de Lula e qual será o kléos de Moro?
Alguma aposta?
Ora, por mais seguro de sua missão moral que o sujeito esteja, a ponto de relativizar tudo que julgue ficar por baixo dela, qualquer ser com mais de dois neurônios não midiotizados sabe que o tal processo do triplex do Guarujá é uma farsa.
Não precisa ser PhD em Direito Constitucional para saber que ninguém pode ser condenado por atos de ofício “indeterminados”. Não ao menos depois de Beccaria.
Ademais, atos de ofício indeterminados em contrapartida de um apartamento furreco, do qual não se tem a escritura, nem as chaves, nem sequer o usufruto de um mísero pernoite.
Pena: doze anos de cana.
Isso no país em que meia tonelada de cocaína num helicóptero pousado numa fazenda não dá nada, se o dono do helicóptero e da fazenda e patrão do piloto contar com a boa-vontade daquele pessoal do microfone, que não empunhá-lo-á dia e noite no cangote do sujeito, como acontece no caso dos inimigos.
Plim-Plim.
Mas daqui a 100 anos também a Rede Globo estará morta.
Restarão os livros de História. Essa, a História, não morre assim tão fácil, porque é inspirada pela musa Clio, filha do olímpico Zeus e da titanide Mnemosine (Memória), todos imortais.
A imortal Clio (Kleió) é quem confere e mantém o kléos dos mortais.
O filósofo Sócrates soube fazer sua escolha de Aquiles no momento mais crítico de sua vida.
Não seguiu o conselho de Críton e não fugiu da cadeia, embora soubesse que não lhe cabiam as acusações injustamente assacadas por Meleto e sua trupe, Ânito e Licão.
Sócrates e Meleto, ambos, enquanto meros mortais, deviam albergar em si boa cota de bens e boa cota de males, misturadamente.
Como todo mundo, quando olhado de perto.
Mas, de longe, é outra coisa.
Depois de mais de dois milênios, o que alguém ainda é capaz de lembrar de Meleto, senão a ignomínia de ter levado à morte ninguém menos que o filósofo Sócrates, admirado por todos, no Oriente e no Ocidente?
Numa analogia, sem nenhuma idolatria mistificadora, mas numa simples analogia em sentido matemático, como 1 está para 3 assim como 2 está para 6, ou numa versão menos objetiva e mais imagética, o micróbio está para o gigante como a pusilanimidade está  para a magnanimidade, eu diria, com o perdão do micróbio que não tem nada a ver com isso:
Moro, você é o Meleto dessa história.
E Lula, o Sócrates.

domingo, 8 de abril de 2018

Fragmentos de um golpe. IX.

Cena do filme 12 homens e uma sentenca, dirigido por Sidney Lumet, com Henry Fonda, 1957

“Se eles não me deixarem falar, falarei pela boca de vocês. Andarei com as pernas de vocês. Se meu coração parar de bater, baterá pelo coração de vocês”. Vindo de outra pessoa o discurso poderia até soar demagógico, mas de Lula não. Ele encontra nos olhos de quem o escuta alguma verdade. Basta vermos a fisionomia das pessoas que o acompanham, do norte ao sul. Há uma vida antes e outra depois de Lula. Lula é um projeto de sociedade. Se o homem se vê agora ameaçado por uma justiça de exceção, no solo hostil e oligárquico da cultura brasileira, é porque seu projeto transformou realmente algumas estruturas sociais e morais de nosso povo, cuja origem, não esqueçamos, está fundada na dicotomia entre o senhor e o escravo, a casa-grande e a senzala, com seus graus distintos de premiação e castigo. Há uma memória da fome na barriga deste povo, há uma memória da sede que transpira na pele e na fibra quando Lula aparece. Vibra, emudece e grita na garganta como víbora do sertão. O povo pôde comprar TV de mais de 40 polegadas. E dentro da TV se conta a história que se quer contar, para vender mentiras, produzir ídolos ou criminosos, salvadores ou inimigos da pátria. Os grandes jornalecos também: imprimem diariamente a narrativa que seus “podres poderes” encaminham pelos editoriais. A família honesta de classe média, leitora de folhas e vejas, se entende capaz de julgar e de fazer crítica (entenda-se crítica ao PT). Já tinham os dados e as razões para a deposição de Dilma, agora para a prisão de Lula: os ratos saem das tocas e se transformam em juízes, policiais, cientistas políticos, segundo o impulso raivoso de suas vidas vazias em condomínios cheios de coisas. Mas há outra tecnologia de dominação sobre o povo. As igrejas evangélicas cresceram, viraram grandes empresas, dominaram também a TV. O problema não é o pastor existir e garantir os benefícios de seu deus para o lucro de um empreendimento. Nem mesmo me parece um mal salvar a alma de quem lhe concede a fé. O problema é ele querer mais, como se candidatar, ganhar uma eleição, virar vereador, deputado ou senador, e legislar contra a liberdade sexual, a dignidade das mulheres, as cotas raciais, e ainda substituir a filosofia pelo ensino religioso nas escolas, a dúvida humanizada pelo dogma divino. Nem me interessam os pastores, mas que não saiam de seus templos para fazer de suas pregações as nossas leis! Lula não fala de uma igreja, ou de um clube, ou de uma sociedade secreta. O seu discurso pertence ao domínio laico e aberto da pluralidade, ao território da política segundo a compreensão do que lhe é ao mesmo tempo contradição e esperança, antagonismo e utopia, luta e justiça, em razão da possibilidade de convivência humana pacífica, apesar de todas as diferenças étnicas e econômicas que nos separam. Ele veio do interior do nordeste para falar uma só língua, mas uma língua que fosse entendida primeiramente pelos miseráveis e pobres, desempregados e operários, uma língua que representasse essa voz muda como a sua única chance de falar, e não apenas obedecer, baixar a cabeça, pegar as migalhas que lhe sobrassem, sobreviver. A sua política pressupõe a inclusão de todas e todos, por mais difícil que seja fazê-lo, por mais que sempre se recomece, em um país expropriado por acionistas e corporações internacionais, cuja ordem interna se garante com a força da polícia ou do exército. Afinal, é o capataz quem acalma a elite brasileira. No discurso de Lula apenas não podem ser incluídos os intolerantes, aqueles que aprenderam a odiá-lo com mais dedicação do que um caso de amor, porque não aceitam o fato de um metalúrgico ter chegado ao poder e ter ampliado vagas e condições aos negros e negras, aos indígenas e trabalhadores. Se ele e seu partido cometeram erros, foram poucos perto da truculência e injustiça que é assumir a sua condenação na história, em razão de um triplex bem sem graça do qual não tirou proveito algum, ainda que se provasse dele, ainda que o quisesse e pudesse comprá-lo. Foram poucos os erros perto dos tiros que tem levado da direita, perto do que tem feito a imprensa e o judiciário com ele, um vexame de sucesso internacional. O golpe abriu a porteira para se vender o país e as suas riquezas, como nosso petróleo que a lava jato varreu a pretexto de uma guerra contra a corrupção. A memória da fome de Lula sempre será maior e mais verdadeira do que o messiânico jejum de um procurador presa da sua republiqueta. A água chegou ao nordeste, a comida ao faminto, os dentes ao banguela, a carne ao operário, a bolsa ao estudante, o concurso ao professor. Isso é real, isso não será esquecido. O que se condena em Lula é ele ter sonhado um Brasil que proíbe sonhos àqueles aos quais o dia precisa ser preenchido com pão, suor e trabalho, sem ao menos uma janela através da qual se possa aspirar algo para fora de sua classe, fadada à jurisdição do bairro, sucumbida pela sensação de impotência e fracasso perto dos filhos treinados e capacitados da classe média, como bem mostrou Jessé Souza na Elite do atraso. Classe por meio da qual se garante o curso da universidade, uma profissão bem paga, algumas viagens para o exterior e a convicção de que são melhores porque jamais precisariam de bolsa família. O Lula concreto, o Lula de carne e osso, só aguenta tudo isso, com a idade que tem, porque sabe já ser uma ideia, como ele mesmo disse. E uma ideia continua para além das grades. Mas isso não torna menos insuportável o absurdo de vê-lo na realidade condenado e preso para o gozo de uma elite medíocre que se julga superior. Nenhum remendo vai costurar essa ferida que se abriu no país. E não há como oprimir por muito tempo um povo que já se sentiu gente. Por fim, vale lembrar que o nome dos juízes que condenaram Sócrates e Mandela nós esquecemos.

Jason de Lima e Silva

domingo, 1 de abril de 2018

Silêncio

Arnold Böcklin, O silêncio da floresta, 1885 




















Há horas em que o mundo se cala
O céu se expande
E não pensamos nos mortos da cidade

Nem nos vivos que nos afligem

Não é uma hora gratuita
Tudo andou a seu tempo
Como se não tivéssemos pressa
De nos encontrarmos ali
Com as pernas esticadas

Há um róseo cinzento que doura
A melodia desta hora

O ritmo cardíaco de uma gota
No telhado da varanda
Atordoa e consola

Muito pássaro como de hábito
E aquele sopro úmido
Da chuva que passou

Nada é em vão
Mas supor algum sentido
É destruir a beleza de cada coisa

Jason de Lima e Silva

sábado, 10 de março de 2018

Fragmentos de um golpe VIII

Desenho de Franz Kafka, 1916
Fonte: https://www.theparisreview.org/blog/2016/09/14/three-by-kafka/

Como calar todos os ruídos para escrever? Não seria a escrita a vingança mais íntima e arrebatadora do silêncio? Mas quem suporta se calar? Terá medo das vozes se o fizer? Das vozes que no fim das contas parecem confusas e não lhe dizem nada, sussurram apenas desgraças próximas de um simulacro de vida. Para que escrever quando o hábito de ler se torna um crime de pensamento ou uma inutilidade da imaginação, sobretudo se for filosofia ou literatura, coisas que necessariamente transformam quando o peito está aberto e o "pulso ainda pulsa"? A não ser que sejam jornais, os grandes jornais, então está tudo perdoado e já não importa se são jornalistas ou publicitários que preenchem as páginas em branco com suas banalidades, e menos ainda se o leitor acredita ter a manchete alguma verdade, quando não toda a verdade, a ponto de muitas vezes encontrar o que justamente esperava, como se suas ideias já não tivessem sido fabricadas pela porcaria dos periódicos que lê, máquina de notícias e propagandas, ração diária para uma classe que se ajoelha frente aos ricos e julga sem méritos os pobres. É preciso tomar cuidado também com a TV, a “guardiã dos fatos objetivos”, como disse o racista ventríloquo. A TV com sua novela da vida real e com a realidade de sua vida novelada: tudo vem pronto e os verdadeiros problemas nos são desviados, espécie de dedo que nos indica o outro lado de coisa nenhuma, paranoia repetida, para manter na invisibilidade as verdadeiras contradições de classe, as relações de opressão e estímulo, exploração e consumo, obediência e premiação, fracasso e mérito, que constituem nosso modo de agir e pensar socialmente. E para combater o mal que nos apontam, o inimigo público, instituem o pior, tribunais de exceção, recrutas messiânicos, militares em comunidades, atletas milionários, os sem noção de toda a ordem, os que abominam a política quando vivem do Estado, os que condenam a corrupção vendidos ao mercado, os que vangloriam os norte-americanos por amor à pátria, os que odeiam os sem teto e ganham auxílio-moradia, os que discriminam os sem terra porque rendem suas propriedades. Toleramos demais os intolerantes. Agora cresceram, praga que rói a cidade pelas calçadas. E é preciso conviver com quem e para quem o medo de perder justifica a exclusão ou o extermínio. Isso quando abaixo de um deus não se colocam para nos iludir falar em seu nome na terra. Como é fácil ser enganado. Prometem a salvação do país e nos dão a pá para cavar a própria cova. Grande vantagem! E enquanto assistimos passo a passo o fim de nossa frágil democracia, torcemos para que essa anônima vida ao menos valesse um filme fora do roteiro produzido pelos idiotas.

Jason de Lima e Silva 

domingo, 18 de fevereiro de 2018

Chame o ladrão, chame o ladrão!





Acorda amor

Acorda amor Eu tive um pesadelo agora Sonhei que tinha gente lá fora Batendo no portão, que aflição Era a dura, numa muito escura viatura minha nossa santa criatura chame, chame, chame, chame o ladrão

Acorda amor Não é mais pesadelo nada Tem gente já no vão da escada fazendo confusão, que aflição São os homens, e eu aqui parado de pijama eu não gosto de passar vexame chame, chame, chame
chame o ladrão, chame o ladrão

Se eu demorar uns meses convém, às vezes, você sofrer Mas depois de um ano eu não vindo ponha roupa de domingo e pode me esquecer
Acorda amor que o bicho é brabo e não sossega se você corre o bicho pega se fica não sei não Atenção, não demora dia desses chega sua hora não discuta à toa, não reclame clame, chame lá, clame, chame
Chame o ladrão, chame o ladrão, chame o ladrão
(Não esqueça a escova, o sabonete e o violão)

Chico Buarque, 1974
http://www.chicobuarque.com.br/letras/acorda_74.htm