sábado, 10 de março de 2018

Fragmentos de um golpe VIII

Desenho de Franz Kafka, 1916
Fonte: https://www.theparisreview.org/blog/2016/09/14/three-by-kafka/

Como calar todos os ruídos para escrever? Não seria a escrita a vingança mais íntima e arrebatadora do silêncio? Mas quem suporta se calar? Terá medo das vozes se o fizer? Das vozes que no fim das contas parecem confusas e não lhe dizem nada, sussurram apenas desgraças próximas de um simulacro de vida. Para que escrever quando o hábito de ler se torna um crime de pensamento ou uma inutilidade da imaginação, sobretudo se for filosofia ou literatura, coisas que necessariamente transformam quando o peito está aberto e o "pulso ainda pulsa"? A não ser que sejam jornais, os grandes jornais, então está tudo perdoado e já não importa se são jornalistas ou publicitários que preenchem as páginas em branco com suas banalidades, e menos ainda se o leitor acredita ter a manchete alguma verdade, quando não toda a verdade, a ponto de muitas vezes encontrar o que justamente esperava, como se suas ideias já não tivessem sido fabricadas pela porcaria dos periódicos que lê, máquina de notícias e propagandas, ração diária para uma classe que se ajoelha frente aos ricos e julga sem méritos os pobres. É preciso tomar cuidado também com a TV, a “guardiã dos fatos objetivos”, como disse o racista ventríloquo. A TV com sua novela da vida real e com a realidade de sua vida novelada: tudo vem pronto e os verdadeiros problemas nos são desviados, espécie de dedo que nos indica o outro lado de coisa nenhuma, paranoia repetida, para manter na invisibilidade as verdadeiras contradições de classe, as relações de opressão e estímulo, exploração e consumo, obediência e premiação, fracasso e mérito, que constituem nosso modo de agir e pensar socialmente. E para combater o mal que nos apontam, o inimigo público, instituem o pior, tribunais de exceção, recrutas messiânicos, militares em comunidades, atletas milionários, os sem noção de toda a ordem, os que abominam a política quando vivem do Estado, os que condenam a corrupção vendidos ao mercado, os que vangloriam os norte-americanos por amor à pátria, os que odeiam os sem teto e ganham auxílio-moradia, os que discriminam os sem terra porque rendem suas propriedades. Toleramos demais os intolerantes. Agora cresceram, praga que rói a cidade pelas calçadas. E é preciso conviver com quem e para quem o medo de perder justifica a exclusão ou o extermínio. Isso quando abaixo de um deus não se colocam para nos iludir falar em seu nome na terra. Como é fácil ser enganado. Prometem a salvação do país e nos dão a pá para cavar a própria cova. Grande vantagem! E enquanto assistimos passo a passo o fim de nossa frágil democracia, torcemos para que essa anônima vida ao menos valesse um filme fora do roteiro produzido pelos idiotas.

Jason de Lima e Silva