segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Fragmentos de um golpe. X.

"Uma faísca, uma fagulha, uma alma insegura".
Racionais Mc's, A praça (Cores & Valores, 2014)

Quem já não viu muita gente convicta perder amigos, mas não as convicções? Quem não viu justamente o convicto ficar mais perdido do que o amigo que se foi? A escolha política diz muito de quem perde e de quem dá a perdida. Pessoas públicas representam valores públicos. Podemos repensar o que falamos, mas não desdizer o dito, nem desfazer o feito. E se o espaço público é ocupado por mentiras, evasivas, boçalidades e frases tão vazias de sentido quanto cheias de preconceitos, não há muita saída senão desaparecer, desaparecer de tudo o que alimenta a máquina de violações. O desaparecimento é estratégico, às vezes a única saída possível nos meios dos quais fazemos parte. Não precisa ser total, nem para sempre, mas pode sofrer longos intervalos. Que seja esclarecido ou deixe dúvidas, pouco importa, o intolerável por vezes é recusado como uma separação às pressas, sem pormenores ou aviso prévio. A tática é sempre evitar os círculos de soberba de uma classe que bajula o rico para rir do pobre, despreza o servidor público e é seu mandatário, promete militarizar a sociedade civil para salvá-la, insiste na religião para substituir a ética, na violência para suprimir a política, na troça para encobrir a burrice. Evitar, manter distância, sobretudo quando o estômago é sensível à estupidez e a alma tem a fome dos clássicos, e não vê graça fácil no mundo. Somos em boa medida aquilo que fazemos, mas também o que representamos: como e com quem nós aparecemos. Não dá para dizer que somos apenas o que sentimos, nem muito menos nossas melhores intenções.
James Ensor, Masks fighting over a hanged man, 1891
A banalidade de uma truculência dá lugar ao pior de nossa humanidade e estorva a luta para o que vem a ser plural, inclusivo e democrático, sobretudo em um país historicamente racista, excludente e autoritário. Osso duro de roer é a casca da ignorância, por mais verniz de cultura que queira ostentar. Não tem ideia nem livro que entre na cabeça se a alma permanece fechada. Produzir efeitos à custa do mau gosto é a contrapartida do fascismo à cultura que lhe falta, a cultura das letras, a cultura da periferia também. Mas essa performance convence uma pá de perdidos, não pela verdade do discurso, mas pela pessoalidade da chacota, pela fanfarronice aleatória, pelo gesto do esculacho. As consequências e os perigos desse exibicionismo não se calculam. Por trás do riso abobado vibra a infâmia: a sensação de ser de fato superior, nem que se mitifique a história ou se despreze a ciência. Essa atitude de desprezo pelo que não reconhece elevado, ou singularmente distinto, é uma forma de barbárie. É a barbárie fundada na reatividade do homem mediano, que pode até ser cordial, mas com o cacoete do zombeteiro, porta fechada para a alteridade. Não lhe basta a vida sem idolatrias e não lhe cansa o amor de seu duplo narciso, o herói que sonhou ser. O exagero serve então de propaganda. Como vencer o messianismo bélico na esfera pública sem uma cautelosa esquiva ética? Mas é preciso manifestar o incômodo, a recusa, e o silêncio também o diz, a via que sobra para situar o limite quando o discurso de nada adianta, sequer as perguntas, as dúvidas, porque as premissas para o fascista são invioláveis e as conclusões tiradas a seu critério. Que recusemos e nos espantemos com tudo isto que não seduz, não forma, não dá frutos, nem sai do lugar, mas ao contrário trava, neutraliza, estigmatiza e ligeiramente aponta os dedos: não para as coisas urgentes e necessárias, mas para se livrar do outro, interrompê-lo, condená-lo. Tortura, ditadura, misoginia, que fazeis numa democracia? Nessa incitação à guerra para prometer a paz, não haveria uma fobia de classe pronta sempre a matar, se for preciso, para viver? Mas que vida afinal?

Jason de Lima e Silva

Revisão e interlocução: Kamila Caldaz

Publicado como artigo no porta da Carta Maior com o título Esquiva ética em tempos sombrios:
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Esquiva-etica-em-tempos-sombrios/4/41855