"Uma faísca, uma fagulha, uma alma insegura".
Racionais Mc's, A praça (Cores & Valores, 2014)
Quem já não viu muita gente convicta perder amigos, mas não as convicções? Quem não viu justamente o convicto ficar mais perdido do que o amigo que se foi? A escolha política diz muito de quem perde e de quem dá a perdida. Pessoas públicas representam valores públicos. Podemos repensar o que falamos, mas não desdizer o dito, nem desfazer o feito. E se o espaço público é ocupado por mentiras, evasivas, boçalidades e frases tão vazias de sentido quanto cheias de preconceitos, não há muita saída senão desaparecer, desaparecer de tudo o que alimenta a máquina de violações. O desaparecimento é estratégico, às vezes a única saída possível nos meios dos quais fazemos parte. Não precisa ser total, nem para sempre, mas pode sofrer longos intervalos. Que seja esclarecido ou deixe dúvidas, pouco importa, o intolerável por vezes é recusado como uma separação às pressas, sem pormenores ou aviso prévio. A tática é sempre evitar os círculos de soberba de uma classe que bajula o rico para rir do pobre, despreza o servidor público e é seu mandatário, promete militarizar a sociedade civil para salvá-la, insiste na religião para substituir a ética, na violência para suprimir a política, na troça para encobrir a burrice. Evitar, manter distância, sobretudo quando o estômago é sensível à estupidez e a alma tem a fome dos clássicos, e não vê graça fácil no mundo. Somos em boa medida aquilo que fazemos, mas também o que representamos: como e com quem nós aparecemos. Não dá para dizer que somos apenas o que sentimos, nem muito menos nossas melhores intenções.
James Ensor, Masks fighting over a hanged man, 1891 |
Jason de Lima e Silva
Revisão e interlocução: Kamila Caldaz
Publicado como artigo no porta da Carta Maior com o título Esquiva ética em tempos sombrios:
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Esquiva-etica-em-tempos-sombrios/4/41855