Já ouvi algumas vezes o comentário de não haver diferença entre ser de esquerda ou ser de direita na
política, simplesmente porque todo o político é corrupto ou se corrompe no
poder. Poder e corrupção retumbam como pleonasmo, ao passo que esquerda e
direita soam como um apanágio sem efeito, na rejeição prévia da política. Essa
opinião apressada serve de condição para um resultado intrigante de nossa
democracia: são eleitos empresários, e não políticos. O caso de Doria em São
Paulo. Notem, não que o empresário seja incompetente para virar político,
sobretudo num sistema capitalista, mas a compreensão de sua atividade pública
será de ordem privada: sobrepor o lucro de alguns à distribuição dos bens
produzidos, investir nas habilidades do indivíduo mais do que educar para a autonomia,
ampliar a renda no mercado financeiro no lugar de fortalecer economicamente o
estado para os serviços públicos. Além da submissão ao par política-corrupção, há mais razões para apressadamente alguém supor
o fim da dupla direita-esquerda entre
nós: a abertura da Perestroika em 1986, a queda do muro de Berlim em 1988... Com
o recente falecimento de Fidel Castro, um jornalista escreveu sobre a morte da esquerda. Quanta pressa para escrever!
Por que reduzir o amplo sentido histórico da esquerda à experiência malograda
ou democraticamente infeliz do socialismo no mundo? Se a esquerda morreu na
história, por que haveria ainda pessoas, movimentos e partidos que defendem algumas
pautas de seu legado? Qual a lógica de palavrear aos quatro ventos ser hoje no
Brasil obrigatório ser de direita, tal
como disse numa entrevista Olavo de Carvalho, cuja fama não o fez filósofo? Aliás,
como ele consegue a façanha de atacar as ditaduras de esquerda e afirmar simultaneamente
a obrigatoriedade de uma única via na política do país, um único horizonte? Mas
por que, afinal, a oposição entre direita e esquerda permaneceria como a mais
adequada para representar a estrutura e a dinâmica da política? No caso do
Brasil, compreender tal distinção me parece tarefa urgente: saberemos de onde
falamos ou com quem estamos quando nos posicionamos contra algo ou contra
alguém. Mas vamos aos filósofos! Que nos deem alguma luz em tempos de trevas! Fernando
Savater é um nome cuja reputação está à altura dos livros que nos tem deixado.
Ano que vem, o pensador basco completa 70 anos de idade. Não são poucos seus
livros, fora os artigos, entrevistas e conferências. Desperta e lê, publicado em 1998, chegou-me pelas mãos de um
estudante. Tão fluente quanto variado em termos de assunto, encontro nesta obra uma
resenha intitulada Esquerda e direita,
que trata, por sua vez, de um livro de Norberto Bobbio, publicado quatro anos
antes, chamado Direita e esquerda, razões
e significados de uma distinção política. No auge de seus oitenta e quatro
anos, em Direita e esquerda, Bobbio
demonstra e descreve histórica e axiologicamente o sentido de tal distinção no
vocabulário da política, justamente para preservá-la. Somente ao fim do livro, o
pensador italiano afirma sempre ter se considerado um homem de esquerda e comenta, com uma pessoalidade não muito comum em
seus escritos, que se ocupou da política por uma razão fundamental: o
“desconforto diante do espetáculo de enormes desigualdades, tão
desproporcionais quanto injustificadas, entre ricos e pobres, entre quem está
em cima e quem está embaixo na escala social...”. Desconforto, claro, que nem
todos sentem, e se o sentir, não necessariamente estudaremos ou faremos
política. Mas Bobbio o sentiu e se dedicou a pensá-lo. Talvez também mantivesse
consigo a ideia de Aristóteles de que uma cidade não seria feliz sem um cidadão
feliz, e o contrário também seria verdadeiro: afinal, quem poderia ser feliz em
um estado infeliz? em uma comunidade ou país nos quais dominasse a injustiça, o
medo e a ganância?
Se
Bobbio defende a distinção entre direita e esquerda, é porque considera o
centro como medida entre os opostos e o fato de que a oposição não corresponda
a conteúdos permanentes, mas (arriscaria eu dizer) a campos semânticos no
interior dos quais os sentidos são ampliados, deslocados e redefinidos
historicamente. É mais uma topologia
do que uma ontologia política, comenta Bobbio, e cita Marco Revelli: “não se é de
direita ou de esquerda no mesmo sentido em que se diz que se é ‘comunista’, ‘liberal’
ou ‘católico’”. Se topologia corresponde a lugar e não substância, razoável haver diferença entre uma esquerda liberal revolucionária
oitocentista e uma esquerda social democrática. O fato é que como territórios do pensamento,
a díade esquerda-direita representa ainda a dicotômica estrutura da política: esse
é o argumento de Bobbio e ele é justificado pela tendência na história do
pensamento político moderno de perceber a contraposição entre uma visão igualitária e horizontal, no caso da
esquerda, e uma visão vertical e inigualitária,
no caso da direita. O discurso de emancipação
do outro e a luta contra o poder opressivo e os privilégios de casta, raça ou
classe, através do qual se situa a esquerda e, em contrapartida, a defesa do
passado, da herança e da tradição,
como é habitual à formação da direita (daí provavelmente a exaltação dos
brasões de família, a menção à glória dos antepassados, o apego às origens). Há
naturalmente movimentos e partidos políticos que no centro se encontram, em
razão de pautas e interesses eventualmente ajustáveis. Foi no centro que PMBD e
PT se encontraram em 2010, por exemplo. Mas o projeto político Mais mudanças mais futuro na candidatura
de Dilma em 2014 não teve coisa alguma a ver com o programa do PMDB Ponte para o futuro. A improbabilidade
de concílio entre um e outro, aliás, foi uma das causas fundamentais para a
usurpação do poder soberano ou, em outras palavras, para o golpe de estado na
democracia brasileira. O próprio Temer o admite, em Nova York, num almoço na
sede da American Society, no dia 21 de setembro deste ano, ao dizer que a
recusa do programa de seu partido teria instaurado um processo de impeachment
para efetivá-lo como presidente. Quem se importa (ou se importou) com pedaladas
fiscais! À parte o fato, se é possível direita e esquerda se encontrarem no
centro, em contrapartida, há movimentos e partidos que se avistam apenas na
extremidade, pela negação do outro e afirmação absoluta de si, lá mesmo onde,
no limite, o diálogo é interrompido pela ameaça e a política é substituída pela
guerra. Igualdade e hierarquia, também é outra tendência
para a distinção entre esquerda e direita. Mas se a igualdade se converte em
princípio de um autoritarismo ou nivelamento da maioria, ser de esquerda significa,
ainda, não aceitá-lo, quer dizer, não aceitar qualquer ditadura que o valha, de
esquerda ou de direita. Então, o que significa ser de esquerda? Voltamos à
pergunta de Claire Parnet a Gilles Deleuze em 1988. E para encerrar, Fernando
Savater, quem educadamente pede licença, ao fim de sua resenha, para ser
tendencioso: “ser de esquerda é não ser de direita. E a direita, seja qual for
a justificativa partidária em que ela se ampare, consiste hoje (...) em
utilizar a brutalidade criminosa e a mentira para atingir objetivos talvez
louváveis em si mesmos; em alentar a discriminação social ou técnica em nome de
argumentos científicos, nacionalistas ou religiosos; em fomentar o puritanismo
paternalista em lugar de educar para a responsabilidade; em sacrificar qualquer
consideração ou ternura humana em proveito do máximo desenvolvimento econômico,
do triunfo da própria identidade cultural, da extensão do reino de Deus sobre a
terra ou de qualquer outra causa. É de direita querer que os países sejam
homogêneos, invulneráveis e ultraprodutivos a qualquer preço; a esquerda se
resigna ao diferente, ao incerto e ao frágil, mas exige que nenhum ser humano
esqueça a preocupação com os humanos,
chave de sua própria humanidade”.
Jason
de Lima e Silva
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