sexta-feira, 29 de maio de 2020

Reflexões filosóficas em tempos de Coronavírus

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Luís Felipe Bellintani Ribeiro
(professor de filosofia da UFF)

Uma situação excepcional, como a de uma pandemia, ao obrigar ao rompimento com a normalidade cotidiana, acaba por revelar, inadvertida e paradoxalmente, não a exceção, mas a regra mais instransponível, exatamente porque, numa hora dessas, o que fica é aquilo com que não se pode romper, mesmo que se quisesse. Aquilo que, de há muito, a filosofia chama de “essência”, o que tem de ser de qualquer jeito, por oposição ao meramente acidental, eventual, contingente, o que talvez seja, talvez não, a depender de certas condicionantes. Numa hora dessas, todo o reino do artifício humano fica ameaçado, e a natureza resplandece como o que é, ao contrário, incontornável.

Ao menos àqueles como eu, remediados de classe média não tocados imediatamente pela fome e pelo desespero sem mais, amparados por remanescência considerável do artifício humano – nossa redoma de cimento com seus eletrodomésticos a nos proteger da violência das ruas e nossa redoma de abstrações jurídicas a nos proteger (por enquanto) daquilo a que os mais pobres estão desde sempre expostos –, uma vez cessada a azáfama que tanto nos estressa, mas também tanto nos distrai, fica a distensão tediosa e angustiante do tempo.

Tédio e angústia, duas afecções sem objeto específico, que giram em torno de nada, acabam por suspender e pôr em xeque, por isso mesmo, não esse ou aquele objeto específico, mas a própria totalidade do ente enquanto tal, em cujo horizonte qualquer objeto específico pode aparecer. O nada de ente nos escancara a essência do ser.

Heidegger na veia.

Sempre esteve aí a primeira de todas as perguntas filosóficas, “por que há simplesmente o ente e não antes o nada?”, da qual fugimos inconscientemente como o diabo foge conscientemente da cruz, em favor da comodidade garantida pela distração dos nossos estresses cotidianos.

Que fugimos dela mostra-nos o fato de nos havermos mal, em tempos anormais de pandemia, com o tempo distendido e o espaço contido, o ócio, o silêncio, a solidão, a suspensão, a falha, o desamparo, o desnorteamento presente, a dúvida quanto ao futuro e, principalmente, a perspectiva da morte, esse nada que limita, a cada instante e desde sempre, o ente da vida, como a sua moldura.

Mas ninguém espera de fato uma resposta à primeira das questões filosóficas. É uma pergunta retórica, no melhor sentido de “retórica”. O ponto de interrogação ao final quer apenas dar o tom de espanto e admiração a duas afirmações peremptórias e inquestionáveis: 1: há o ente. 2: não há o nada.

Parmênides na veia.

De todo modo, se a não-existência do nada não importasse de alguma maneira para a existência do ente, sequer haveríamos de verbalizar esse truísmo banal. Muito mais real que as bugigangas e quinquilharias expostas nos templos de consumo e o pisca-pisca barulhento respectivo de sua publicidade é a negatividade da saudade e da expectativa, da carência do desejo, da dívida impagável do sempre ainda por fazer, da dor sem nome, enfim. 

Assim, o mais rudimentar dos seres vivos, a ponto de estar mesmo no limiar entre o vivo e o mineral, regido pelo mesmo princípio de afirmação e expansão característico das formas de vida altamente complexas – a saber, conseguir multiplicar seu código genético no breve intervalo entre nascimento e morte, e assim conservar por algum tempo a forma (eîdos) da espécie (eîdos) –,  de repente escancara o que sempre esteve aí de modo velado: a possibilidade sempre iminente de colapso do que até então significou ordem e estabilidade (o caos não é apenas um momento anterior cronologicamente à instauração do cosmo, mas seu fundo último que o acompanha o tempo todo) e, simplesmente, a possibilidade iminente do mergulho derradeiro no nada, apagão da aísthesis e da nóesis, que é a morte para aquele que morre.

Sim, a ontologia regional do ente vírus pode nos ajudar a pensar na ontologia geral da totalidade do ente.

Um vírus é uma molécula de ácido ribonucleico envolvida por uma capa de proteína, à guisa de anteparo, a marcar a fronteira que separa um interior e um exterior, numa ipseidade mínima de simulacro de vida que sequer se constitui no que chamamos de célula. O vírus não tem metabolismo próprio, mas ele pode entrar em outro metabolismo e assim ter seu código genético replicado. Com isso, o vírus cumpre a determinação elementar de todo ser vivo acima assinalada, e por esse critério é tão representante da vida quanto qualquer outro ser vivo. Um código genético que se afirme efetivamente já é vida. É tão phýsis, natureza, quanto qualquer outro eîdos, inclusive, evidentemente, esse eidosinho faceiro e pimpão que é o homo sapiens.

Em linguajar nietzscheano: é tão Vontade de Poder quanto.

Não “quer” matar por ser intrinsecamente mau, mas “quer” apropriar vida para afirmar vida.

Mas o realmente interessante da ontologia do vírus é o fato de ela apontar para uma fronteira que, mais do que separar e isolar, dá conta, ao contrário, do fator de continuidade entre âmbitos aparentemente descontínuos e, portanto, aponta para um monismo ontológico radical: não há diferença solene entre o reino inteiro da vida e o mineral, não há um hiato metafísico entre ambos. Um vem do outro. A química orgânica é só um caso particular da química inorgânica. A tabela periódica é uma só. A química orgânica é apenas a química do carbono, esse elemento que tende a se combinar consigo mesmo formando moléculas enormes, como os ácidos nucleicos e as proteínas, mas que, enquanto elemento, se submete aos mesmos princípios naturais aos quais os outros cento e poucos elementos também se submetem.

É a teoria científica por enquanto em voga no Ocidente que diz: não é preciso apelar para nenhuma intervenção de um deus ex machina para dar conta da emergência da vida a partir da pedra. A própria trama intrínseca da história da pedra dá conta.

Com isso, prezado leitor, não quero dessacralizar a vida.

Quero sacralizar a pedra.

Cena do filme A guerra do fogo (1981), dirigido por Jean-Jacques Annaud
Esse vivente ancestral.

É claro que, a depender do sentido específico do “sagrado” em cada situação específica, pode muito bem ser o caso de uma profanação legítima.

Mas aqui quero propugnar um monismo ontológico radical que desemboca numa sacralização universal: se o homo sapiens e os outros hominem vieram de um primata não-humano; se todos os seres vivos vieram de um primeiro coloide que se formou a partir do inorgânico; se tudo que é terráqueo e terroso veio e vem do espaço sideral; se todas as estrelas vieram e vêm continuamente da mesma poeira estelar; matéria que estava reunida num ponto e que, como que numa explosão, começou a se expandir há 14 bilhões de anos, podemos aqui concluir que tudo, no fundo, é uma coisa só – que sobre a multiplicidade de indivíduos e de espécies devemos dizer que há um liame genealógico, desde o um, de tudo com tudo, uma “fraternidade” essencial, digamos, como metonímia de todo laço de parentesco, não apenas entre os indivíduos de uma mesma espécie, mas entre as próprias espécies, pois umas vêm das outras, desde o um.

O homem é um parente mais ou menos longínquo do vírus. O homem também, como o vírus, é feito de ácidos nucleicos e proteína, e também existe porque consegue reproduzir a tempo o código genético de sua espécie. O homem é um parente um pouco mais próximo da árvore, mais próximo ainda do peixe, mais ainda do lagarto, mais ainda do pinguim e da gaivota, e muitíssimo mais próximo do rato. Os morcegos de Wuhan são ratos que voam. Humanoides em potência que voam. 

Os morcegos são os únicos mamíferos que voam. Há os mamíferos que rastejam pela terra, há os que nadam nas águas, mas os morcegos são os únicos mamíferos que voam pelo ar.

Ratos que nadam, rastejam ou voam, em todo caso.

Não à toa, cientistas fazem estudos sobre o comportamento do ser humano manipulando em laboratório o comportamento de ratos.

O parentesco é evidente.

Acho bonito termos a humildade de reconhecer que, malgrado toda a complexidade que caracteriza nosso ser, não somos muito mais do que um vírus, do mesmo modo que acho bonito reconhecer que na simplicidade do vírus – aliás não tão simples assim, se compararmos moléculas grandes, como ácidos nucleicos e proteínas, a moléculas pequenas, como as inorgânicas, a despeito do liame de continuidade que há entre elas – já há motivo suficiente para deslanchar o espanto e a admiração próprios ao filosofar, por já jazer ali, entre o mineral bruto e a vida consciente própria do humano, todo o mistério do ser, que de resto caracteriza todo e qualquer ente que já veio à tona e deixou para trás o nada.

Acho que o leitor já entendeu aonde quero chegar. Sim, do monismo radical no âmbito da ontologia, não cogitado sem mais, mas inferido da composição de teorias científicas em voga no Ocidente, quero chegar a uma noção no âmbito da ética: a fraternidade radical de todas as coisas do universo, e a consequente relativização de qualquer pretensão de estabelecer hierarquias dando mais importância a certos entes que a outros. A diferença de superfície entre os diversos tipos de ente que habitam o universo não abole o fato de que uma igualdade radical os nivele radicalmente: são todos entes finitos que irrompem desde a mesma matéria, desde a mesma poeira estelar. Matéria – já o diz o próprio nome – é a mãe (mater) de todas as coisas. E o princípio ético de respeitar a mãe é fácil de propor e é de fácil aceitação por parte de todos. Aqui nesse pequenino pedregulho desse “remoto rincão de um universo cintilante de estrelas” (Nietzsche), a mãe se chama Gaia, mas isso é só um efeito da onomástica que precisa se multiplicar para bem nomear a multiplicidade de objetos. Diante da imensidão do universo feito de muito vazio e alguma poeira estelar (chamo ao conjunto de ambos “matéria”), até na hora de defender nossa deusa mor, a Terra, temos de ter humildade, porque ela é um ente minúsculo diante de uma vastidão gigantesca que mal conseguimos imaginar.

Hoje em dia vemos a retórica da “guerra contra o inimigo” aplicada ao combate ao coronavírus.

Tudo bem.

Precisamos sempre de retóricas para embalar nossas narrativas, pelas quais damos sentido aos fatos, pelas quais corrigimos com a linguagem a falta de sentido fundamental dos fatos, ou ao menos a falta de sentido, de acordo com o figurino humano, dos fatos brutos, totalmente fora da escala desse figurino.
Como dizia Novalis, “o mundo precisa ser romantizado”, sob pena de sucumbirmos ao mais tosco e desglamourizado positivismo.

Chegamos até esse ponto da história aos trancos e barrancos, erguendo e destruindo coisas belas, e não haveríamos de dar algum sentido épico a isso?

Ora, ora.

Parece mesmo não haver problema em tratar como inimigo um ser tão longínquo, ainda que parente, tão minúsculo, tão distante da consciência e dos sentimentos sofisticados que nos caracterizam, o tal “quase-mineral”.

Mas quando, por exemplo, a retórica da “guerra contra o inimigo” é aplicada de humano contra humano, e não raro faz parte dessa retórica a desumanização do inimigo, comparando-o a um vírus, um verme, um porco imundo, um rato de esgoto, vemos claramente que retóricas assim não têm nada de inocente.

Nesse momento do debate, vale sempre citar os versos de Chico Buarque na canção Ode aos ratos: “Rato de rua (...) Tenaz roedor (...)/ Oh meu semelhante/ Filho de Deus, meu irmão”.

A vantagem de usar a retórica da guerra contra o inimigo para falar da pandemia de coronavírus seria que, ao jogar a clivagem decisiva para o âmbito biológico (homo sapiens versus Covid-19), teríamos a chance de encarar de frente o fato óbvio da unidade da espécie e da igualdade natural de todos os indivíduos que a compõem, e assim repensar nossas clivagens políticas e sociais como puramente artificiais. Afinal, como diz Antifonte ao defender a igualdade natural de gregos e bárbaros, todos caminham com os pés e seguram com as mãos, e choram quando estão tristes e riem quando acham graça. E são acometidos pelas mesmas moléstias naturais.

Mas parece que estamos longe disso. Multiplicamos as clivagens para muito além do biológico...

Incrível. Mais de dois milênios após a República de Platão, e ainda estamos enredados na distinção amigo-inimigo quando vamos tratar de assuntos éticos. E ainda carecemos de impingir ao inimigo de ocasião a pecha de rato, de verme ou de vírus maldito.

E o inimigo do Si é sempre o Outro. Pode apostar.

Melhor relativizar esse troço, para não virar um fascista.

No Brasil de hoje, os piores tipos têm o hábito arrogante de se autoproclamarem pessoas “de bem”. Os entreguistas americanófilos se enrolam na bandeira nacional, cantam o hino do país que, no fundo, desprezam e, em nome de Cristo, evocam os piores afetos, os mais contrários aos que Cristo efetivamente pregou. O sujeito mente desbragadamente e sai acusando o adversário de feiquiníus.

“Chame o ladrão”, citando o Chico de novo, numa inversão própria da ironia para dar conta de uma realidade que ficou de cabeça pra baixo.

O cara rejeita o darwinismo no âmbito da biologia, único âmbito em que ele é realmente válido, e, não satisfeito, apregoa o darwinismo no âmbito econômico, político e social, verdadeira aberração ética.

A maior bandeira de que o cara é mau é ele se autoproclamar “do bem”.

Esse delírio coletivo depende de fantasiar um grande inimigo, a ser malhado como boneco de Judas em sábado de aleluia.

Sim, há mais de dois milênios Platão escreveu um texto e colocou na boca do personagem Polemarco uma definição de justiça que ainda não conseguimos superar: “fazer bem aos amigos e mal aos inimigos”, para a insatisfação do personagem Sócrates, incomodado com a aparente incoerência de a justiça, que é uma areté, uma “excelência”, isto é, um grau máximo do bem, ser definida tanto pelo bem quanto por seu contrário, o mal. Pelo raciocínio de Sócrates, a justiça deveria ser sempre exclusivamente fator de bem.

Mas, como assim, amigo e inimigo? O monismo radical acima exposto não deveria desembocar naturalmente na doutrina da amizade universal? Afinal, o Outro não está apartado de Si, mas ambos, antes, são o Mesmo.

O altruísmo entre as partes do todo seria, no fundo, o cuidado-de-si do Um.

Onde estaria o inimigo?

Pois é, no país da filosofia, tudo sempre é mais complicado do que a doce ilusão de saber, enfim, alguma coisa.

Ninguém sabe nada.

Só Sócrates sabe alguma coisa: que não sabe.

Merecido, o oráculo dado em Delfos pela Pitonisa a Querefonte.

É por isso que devemos numa hora como a de uma pandemia dar mais ouvidos à opinião da ciência que às opiniões lastreadas em ideologia ou religião. A ciência segue o exemplo de Sócrates e começa sua marcha sempre pelo reconhecimento da ignorância. A ciência não é dona da verdade. Sendo humana, demasiado humana, não é nenhuma Brastemp, mas “é o melhor que tá tendo”, como se diz nas Minas Gerais. A verdade é a meta para a ciência, nunca o dado de saída. O dado de saída é o problema e a dúvida. E a cada aproximação da verdade, que deve ser amparada em evidência emanada dos fatos e no aval compartilhado com os pares da comunidade científica, não prevalece a acomodação com o resultado, mas o desafio de falsificá-lo o quanto antes. Sócrates na veia: digam aí, Símias e Cebes, antes que eu trague esse aperitivo de cicuta, qual é a verdade, afinal; prefiro morrer triste, mas com a verdade na cabeça, a morrer alegrinho, iludidinho com uma mentirinha qualquer.
Quem estuda filosofia sabe quão problemático, porém, é falar de “evidência emanada dos fatos”. Por uma razão simples: tudo aquilo que é próprio do lógos humano, a interpretação, a valoração, a nomeação e o enredamento do nomeado em sintaxe e narrativa, não é uma instância segunda à espera da entrada da realidade primeira pelos sete buracos da cabeça para começar, então, a operar. Não. A dita realidade primeira já foi desde o começo atravessada pelo lógos. Não adianta definir a verdade como dizer aquilo que é, porque aquilo que é já é efeito de um dizer.

O círculo hermenêutico, porém, não é vicioso. E o filósofo deverá saber, seguindo o exemplo de Górgias, que combatia a seriedade dos adversários pelo riso e combatia o riso dos adversários pela seriedade, combater o eventual excesso de iluminismo de uma época histórica com romantismo, e o eventual excesso de romantismo com iluminismo.

Eu gostaria de apoiar explicitamente o projeto de nosso querido cientista Miguel Nicolelis de criar um iluminismo do século XXI – e com ele todo um ideário belíssimo que costuma vir no encalço: cosmopolitismo, cooperação entre as nações, paz perpétua e autonomia e liberdade dos sujeitos –, mas é preciso que ele traga subsumido em si toda a lição da história transcorrida desde o século XVIII. As luzes devem saber também deixar as sombras serem.

A Idade Média não é uma época de trevas, nem a modernidade é o último biscoito do pacote. A Idade Média é iluminada pela luz de seu Zeitgeist próprio. E o Zeitgeist luminoso da Modernidade também tem seu ponto cego.

Mas, a essa altura do campeonato, rejeitar aquilo que é o nosso fatídico histórico incontornável, a pretexto de decadência, como se a modernidade e o correlato desencantamento do mundo fossem uma questão de escolha, é o fim da picada.

Amor fati, reacionários e conservadores, amor fati! Resta-nos conhecer o passado e fazer o futuro, caminhando com o tempo, a favor dele, não contra, considerando o debate diacrônico que a tradição trava em torno da palavra filosofia desde os antigos. A história sempre poderá ser pintada como “progresso” ou “corrupção da origem”, conforme a edição dos fatos numa narrativa unificadora, mas, independentemente desse juízo, o fato é que “não podemos dar por não acontecido aquilo que efetivamente aconteceu”, limite ao qual, segundo os gregos, até os deuses estavam submetidos. Isso vale também para a história do pensamento. Não há como pensar hoje em dia desconsiderando o que disse Marx e o que disse Freud, por exemplo. É claro que os modelos que eles propõem não são a verdade absoluta, e estão aferrados ao limite de seu léxico e de sua sintaxe, e de seus pressupostos axiológicos, e de suas condições históricas. Dizem uma parte da realidade, e não a realidade toda, mas o fato de dizerem uma parte, não de uma elucubração arbitrária, mas da realidade, faz com que devam ser considerados. 

Amor fati é o afeto ético básico de toda filosofia trágica digna do nome, que, ao invés de pretender excluir uma parte do real a pretexto de um moralismo qualquer fundado numa ontologia simplista qualquer, encara de frente a contradição fundamental, pela qual ainda faz sentido falar em guerra contra o inimigo mesmo no âmbito de uma ontologia da fraternidade, logo amizade, universal.

Sim, se, por um lado, há uma contradição malsã a ser sempre combatida pelo filósofo, mera frouxidão de uma ambiguidade que desnorteia e assim debilita o discurso e a ação, há também uma outra contradição benfazeja, a ambiguidade inerente a todo discurso complexo, de uma polissemia a ser sempre destrinchada pela analítica do perspectivismo e do relativismo.

Os pitagóricos não se pejavam de assumir, logo na abertura de sua doutrina, uma contradição do segundo tipo.

Tudo é um, mas esse um é a tensão harmoniosa de dois princípios: o par e o ímpar.

O um é dois.

O monismo é um dualismo.

O Outro já vige no âmago do Mesmo desde a origem, não é apenas uma noção de segunda ordem num hipotético Império da Identidade.

Verdade antiquíssima, aliás, compartilhada por civilizações as mais dispersas pelo orbe terrestre, muito antes dos pitagóricos e dos gregos em geral, essas “crianças tardias”, como diz o sábio egípcio a Sólon no Timeu de Platão.

É que o Um não é só a quietude da paz panteística entre irmãos. É também o movimento do conflito panteístico, em que as “formas” (de novo, para bem fixar o léxico: os eíde, diriam os gregos, as “espécies”, diria o neolatim), ainda que irmãs, precisam disputar a matéria finita, para afirmarem-se a si, pois não existem formas separadas da matéria numa ontologia imanentista, que é a que aqui se propõe.

As batatas do Machado.

O coronavírus, a árvore, o peixe, o lagarto, o pinguim, o rato, o morcego de Wuhan e o homo sapiens têm os respectivos códigos genéticos de seus ácidos nucleicos moldados a partir dos mesmos quatro ou cinco nucleotídeos constitutivos.

Só muda a ordem.

Quatro ou cinco, prezado leitor, apenas quatro ou cinco pecinhas de Lego dão conta de toda a montagem genotípica do reino da vida no planeta Terra, essa brincadeira da criança de Heráclito.

Os mesmos aminoácidos, a depender da ordem da combinação, formam todas as proteínas dos seres vivos e acabam por lhes conferir fenótipos muito dessemelhantes.

Os aminoácidos, os nucleotídeos são as batatas, sempre em disputa.

Os carnívoros os arrebatam dos outros bichos, os herbívoros, das plantas, as plantas os sintetizam desde o mundo mineral usando a energia da luz do sol.

A unidade do todo se sustenta enquanto harmonia e disputa, qual a guerra de Heráclito. 

É o “pagar justiça e castigo” (dídonai díken kaì tísin) que todas as coisas do universo têm de fazer a todas as demais, “em função da injustiça cometida” (tês adikías), conforme a sentença mais antiga da tradição ocidental, a Sentença de Anaximandro.

Díke por adikía.

Restituir justiça pela injustiça cometida.

Nascer é arrebatar a matéria de outrem para afirmar a própria forma. O nascer depende de um matar. Eis a injustiça original. Punição pela injustiça cometida: definhar e morrer, liberando assim a matéria para outros nascimentos. Eis a restituição da justiça.

Na luta do homem com o vírus não há o lado da vida contra o lado da morte.

É vida/morte contra vida/morte.

Chega de enlatado americano, com seus mocinhos e bandidos, super-heróis e vilões profissionais.

Chega de novela da Globo, com seus bonzinhos e malvadinhos, caricaturas da mediocridade.

Mais tragédia, por favor, em que as partes em disputa têm sempre alguma cota de razão e de culpa.

Que os homens se valham da retórica da “luta contra o inimigo invisível” é o que se espera daquele que é apenas um lado da contenda. Se os vírus fossem animais que têm lógos, isto é, se pudessem falar, e se fossem animais políticos, também usariam semelhante retórica, só que com sinal invertido.

Bin Laden arremessou dois aviões contra as Torres Gêmeas em nome do bem contra o mal. Bush invadiu o Afeganistão, em revide, em nome do bem contra o mal.

Ninguém é mau na sua autoconcepção. Mau é sempre o outro.

O Outro.

Melhor relativizar esse troço, caro leitor, para não virar um fascista.

Feita sem mais a equação intuitiva “bem = preservação/afirmação de si” e, de outro lado, “mal = destruição/negação de si”, resulta daí que o olhar que olha para o todo, que olha para a disputa que as formas travam em torno da matéria e pela matéria, vê a tragédia da simultaneidade do bem e do mal, pois que o nascimento da forma que nasce se liga fundamentalmente à morte da forma que morre. Só a matéria resta como indiferente a esse discernimento entre bem e mal, só a matéria é “para além de bem e mal”.

Aliás, não faltaria razão e motivo para uma luta contra uma espécie que, em tempo recorde, detona com a biodiversidade do planeta, polui as águas e o ares e faz terra arrasada da Terra, sem nem ao menos fazer isso em prol de todos os indivíduos dessa espécie, mas para o usufruto nababesco de uns poucos e privação da imensa maioria dos congêneres.

Vou torcer pro vírus, nesse caso, como torceria pelo Íbis contra o Liverpool...

Uma das consequências da freada brusca na atividade econômica causada pela pandemia foi a diminuição da poluição. Paisagens voltaram a ser visíveis. Animais selvagens circularam por ruas de cidades desertas.

Os indivíduos humanos diariamente matam um número gigantesco de indivíduos de diversas espécies de animais e vegetais para devorar-lhes a matéria, como se o universo girasse em torno do homem, tão impudicamente quanto o vírus apropria o metabolismo do indivíduo humano. Mas, “se pudéssemos nos entender com a mosca, veríamos que também ela boia no ar com esse páthos e sente em si o centro voante do universo” (Nietzsche).

Será que não somos capazes de criar, a essa altura da história, um humanismo que prescinda da posição antropocêntrica, que realmente não se justifica a essa altura da história?

Será que não poderíamos, pelo menos no início da conversa, não por arrogância, antes, pelo contrário, por modéstia, prescindir da tese de que o ser humano esteja no centro da criação e de que os outros seres foram criados para lhe servir de alimento ou instrumento?

Navalha de Ockham, por favor.

Por modéstia.

Será que não podemos encontrar em outro lugar um motivo para amar e proteger o ser humano? Talvez do lado da assunção da finitude e da mortalidade? Por que rejeitar a finitude e a mortalidade para enaltecer a humanidade? Afinal, o ser humano é finito e mortal em muitos sentidos, como, de resto, todos os demais entes do universo, nossos irmãos.
Não apenas cada indivíduo de uma mesma espécie está fadado a morrer; a própria espécie está fadada a desaparecer, em alguma dobra do tempo biológico, geológico ou cosmológico. No caso da espécie humana, talvez nem se precise esperar tanto, o próprio tempo histórico dos humanos pode compreender, como decorrência da própria ação humana, o fim da espécie. Aos olhos da natureza, porém, a pior hecatombe da história dos homens é ainda um rearranjo qualquer da matéria dentro das leis da natureza, e, como tal, uma outra harmonia.
Por isso, acho ainda antropocêntrica uma outra expressão retórica comum de se ouvir hoje em dia, a da “vingança da natureza”.

O ser humano destruiu florestas, desentocou o morcego e o vírus que estavam lá, na deles, e agora paga o preço disso.

Até é verdade.

Mas representar como “vingança”, como se houvesse uma grande consciência providencial segurando a balança e o chicote por sobre a cena imanente do mundo, parece-me de novo dar muita pompa e importância a esse “bípede ingrato” (Dostoiévski), que acha que “os gonzos do universo giram em torno do seu agir e pensar” (Nietzsche) e têm o tamanho e a temporalidade ajustados ao seu figurino.

Qualquer rearranjo da matéria dentro das leis da natureza é ainda harmonia, pois harmonia não é apenas a síntese que pacifica, mas também a antítese do conflito.

É realmente duro de engolir. Há 14 bilhões de anos a matéria do universo vem se rearranjando continuamente dentro das leis da natureza; uns dez bilhões de anos depois, num cantinho perdido desse universo, num pedregulho que se desgarrou de uma estrela qualquer, a matéria começou a se rearranjar de modo mais raro e complexo; toda uma rede de interações foi lentamente formando um sistema de interdependência; sim, a Terra inteira pode ser considerada um único ser, cheia de jogos de vida e morte, cheia de violência, claro, mas um único ser que se mantém no equilíbrio móvel de suas partes em simbiose: não fosse a simbiose entre uma série de micróbios e o homem, o homem não estaria aí. Vamos agora falar de “micróbio do bem” e “micróbio do mal” por isso, como há até pouco tempo as crianças aprendiam na escola que havia animais úteis e animais nocivos? Tome antropocentrismo. Ora, quando Protágoras diz que o homem é a medida de todas as coisas, ele está a fazer uma denúncia, e não uma apologia. É fácil falar de mãe natureza pensando na oncinha pintada, na zebrinha listrada e no coelhinho peludo. Difícil é reconhecer-se irmão dos bichos escrotos.

Quatorze bilhões de anos de lenta complexificação do um em múltiplas formas em simbiose e eis que a versão ocidental do ser humano (que hoje em dia domina quase todos os quadrantes do globo) começa a manipular as partes, como se elas não dependessem da articulação de todo o sistema, e isso numa velocidade totalmente incomensurável com a lentidão própria dos processos naturais.

Deu ruim, como não poderia deixar de ser.

“Vejam como as águas de repente ficam sujas...” (Gilberto Gil).

 É duro de engolir, mas temos de aprender a lição, e tentar mudar alguma coisa, sem recrudescer ainda mais a perspectiva antropocêntrica.

Se, após explodirmos nossas bombinhas nucleares, numa hecatombe totalmente indiferente ao universo extraterrestre, só restarem as baratas na face da Terra, a evolução das espécies seguirá, pelas baratas.

Mas também as baratas estão fadadas a desaparecer.

É que as teorias científicas até o momento em voga no Ocidente não apenas nos dão uma cosmogonia de todas as coisas, mas também uma escatologia.

Todas as formas vão se dissolver na matéria da mesma maneira que se geraram da matéria. O sol veio a ser, um dia vai deixar de ser. A Via Láctea veio a ser, um dia vai deixar de ser. A única coisa que não veio a ser, mas sempre foi, é e será, e que, portanto, cumpre o papel da essência buscada pelos filósofos, é a poeira estelar, a matéria, que, dizem, há 14 bilhões de anos estava toda comprimida num único ponto, antes de explodir.

O espírito, por cuja imparidade poderíamos falar de uma dignidade ontológica acima da matéria, é nada mais que spiritus, pneûma, ou ainda anima, animus, ánemos.

Psykhé.

Sopro, alento, vento, portanto ar, portanto corpo, portanto matéria.

A alma é uma forma do corpo. O espírito é uma forma da alma. A razão é uma forma do espírito.

Tudo vem da terra, quand même.

Da “terra”, um outro nome para o corpo.

Tudo vem da terra; importante não perder de vista esse princípio.

Ferdynand Ruszczyc, Terra, 1898
“Permanecei fiéis à terra”, irmãos, “e não acrediteis nos que vos fazem promessas extraterrestres” (Nietzsche).

Se o alento que a matéria produz é capaz de consciência, esse milagre puramente físico deve ser acolhido por seu destinatário com humildade, e não com arrogância. Ao tomar consciência de si e dos outros entes, o ser humano realiza, por todos os entes, uma possibilidade da matéria comum. O ser humano é a poeira estelar se dando conta de que a poeira estelar e todas as suas derivações existem.

Mas como falar de existência antes desse dar-se conta?

Não seria a consciência a própria ciência originária?

Não seria a representação a própria apresentação do que se presenta pela primeira vez?

Esse é o grande fundamento da dignidade humana.

Os seres humanos são todos diferentes entre si, quanto aos pontos os mais variados, mas todos sentem dor e têm a representação consciente da dor.

Esse é o grande fundamento da igualdade de todos os seres humanos, igualdade em dignidade, no seio da mais complexa, variegada e irredutível diferença.

Mérito exclusivo do ser, e não do ser humano. Não foi o próprio humano que deu a si mesmo o fato de patentear na consciência para todos os entes do universo o fato de todos existirem. Ele se encontrou lançado de chofre nessa condição. Como diz Caetano Veloso: “aconteceu de eu ser gente, e gente é outra alegria, diferente das estrelas”.

Mesmo sem nenhuma doutrina especista (antropocêntrica) como pano de fundo, vale lutar pelo ser humano, pelo milagre que representa seu advento casual, como espécie e em cada indivíduo igualmente. Vale lutar para que ele desapareça no tempo biológico, geológico ou cosmológico, mas não no tempo histórico, que está ao alcance de sua força transformadora, na margem ínfima de sua liberdade. 

Sim, falemos daquilo que ainda podemos fazer a partir da crise do coronavírus, daquilo que a Moîra e a Týkhe deixaram ainda à nossa liberdade.

Afinal, ouve-se amiúde: o mundo jamais será o mesmo depois da crise do coronavírus. Qual é a índole desse vaticínio?

Muito se tem falado sobre duas consequências, mais ou menos necessárias, de duas verdades óbvias que o isolamento social exigido pela pandemia deixou escancaradas em praça pública, de modo a não ser mais possível tergiversar e escamotear sua obviedade.

Primeira verdade óbvia: o homem é um animal gregário, social, “político”, diriam os gregos, fazendo referência a um bicho cujo habitat natural é a cidade (pólis); dito sem rodeios: os seres humanos não vivem uns sem os outros; precisam da vida comum. Quando a gente é obrigado a ficar isolado dos outros para evitar contágio mútuo é que fica escancarado quão dependente, em múltiplos sentidos, a gente é dos outros.

Segunda: o fundamento da produção de riqueza é o trabalho humano. Um ricaço podre de rico nada poderia fazer de seus dígitos eletrônicos cheios de zeros à direita numa situação de isolamento absoluto, trancafiado em sua cobertura de cimento, se não dispusesse do fruto do trabalho de outrem, ao passo que o pequeno lavrador ainda poderia trabalhar sua pequena gleba e de seus frutos sobreviver.

As consequências seriam, respectivamente:

1. A obsolescência do modelo neoliberal, que negligencia a força originária do caráter social do homem em favor de uma concepção fraca de sociedade, como mero resultado, e não como origem, do entrechoque de ações de caráter individualista e privado.

2. A obsolescência do modelo que privilegia o capital financeiro, que nem capital produtivo é, em detrimento do trabalho, cada vez mais precarizado.

Se seguirmos a lógica, é de se esperar no mundo pós-pandemia ao menos um consensozinho keynesiano básico, como salvação do capitalismo mesmo. Sendo um pouco mais otimista, o reconhecimento, se não consensual, ao menos largamente majoritário, da necessidade de um sistema de saúde público e universal, como o SUS aqui no Brasil, de uma previdência pública solidária, de uma regulamentação justa do trabalho. Oxalá um sistema único de educação também, um SUE, com planos de carreira e salários dignos para profissionais da educação desde a creche até a pós-graduação. Renda mínima no mundo inteiro? Parece óbvio. Caprichando ainda mais na utopia: a entrada bonita dos saberes dos povos não-ocidentais nas escolas do Ocidente, de cujo atravessamento recíproco surgirão as filosofias do futuro próprias do mundo do futuro. Afinal, se a meta de enfrentar efetivamente suas duas principais encrencas, a desigualdade social e o desequilíbrio ecológico, entrar no radar do Ocidente, nada mais lógico do que olhar para os povos que, pela própria dinâmica de suas culturas, sequer chegaram a estar alguma vez assim encrencados.

O problema de tudo isso é que tudo isso é lógico demais, óbvio demais, racional demais, iluminista demais.

É muito bom para ser verdade, como se diz.

Eu gostaria muito de fazer coro com o ideário de nosso querido economista Eduardo Moreira, totalmente condizente com aquele ideal de um iluminismo do século XXI do Nicolelis supracitado, que depende da distinção de uma economia da necessidade (finita) e uma economia do desejo (infinito). Se, de um lado, a encrenca da desigualdade se enfrenta com crescimento econômico e, de outro lado, a encrenca ecológica se enfrenta com decrescimento, a única maneira de resolver a aparente contradição é pensar num crescimento do PIB baseado na expansão da agricultura familiar não poluente e devastadora, na expansão das profissões ligadas à arte, à cultura, na expansão dos produtos da linguagem e do pensamento, que não precisam ferir de morte a Terra.

O problema é que, em se tratando de ser humano, não é nada fácil distinguir o necessário do supérfluo. De que tem fome o ser humano? Há alguma necessidade finita sua não atravessada desde a origem por desejo infinito, a despeito da obviedade intuitiva dessa distinção? Os outros animais comem até o limite da necessidade. A imparidade da condição humana, por seu turno, funda ao mesmo tempo a figura do faquir jejuno, do chef gourmet, do natureba fitness e do glutão junk food. Tudo a mesma coisa: um quê além do necessário natural, algo que flui por sobre o necessário. Fluir sobre: supérfluo. Um supérfluo substancial.

Platão na República já tinha colocado Gláucon a protestar diante da primeira cidade imaginada por Sócrates, cidade frugal e vegetariana, cheia de prudência e moderação, chamando-a pelo epíteto ofensivo de “cidade de porcos”. Resignado, Sócrates introduz nela o “luxo”. Logo surge nela um monte de coisas e gente que não havia na primeira, o urbano se desgarra do rural e, corolário mor, surge a guerra e a necessidade de um exército. Vinte e três séculos depois, Marx captou a mesma verdade e apontou para o fato de que, satisfeitas as primeiras necessidades, surgem novas necessidades.

Para mudar as coisas, não bastará o argumento racional que demonstre, num silogismo, o óbvio. Enquanto a imagem de um playboy em seu carrão, seu iate ou seu jatinho não suscitar a impressão generalizada de breguice, pouco valerá a tomada de consciência do conceito de injustiça. O processo deve correr no plano estético, tanto quanto no noético. O consumismo afetado da dondoca é cafona, afinal, e não apenas insustentável, e deveria produzir vergonha, alheia e própria, e não inveja alheia e vaidade própria. A cena de um magnata poderoso espumando arrogância e, feições constritas de tanto ódio, gritando alterado que seu país há de ser grande de novo, em plena realidade multicultural, deveria embrulhar o estômago muito antes de o cérebro chegar para fazer o seu trabalho. É brega, é cafona, é de mau gosto, é repugnante.

Países e grandezas de países são fatos do artifício humano, da história humana, e não da natureza, não há nenhuma essencialidade ontológica aí. Mas o mundo que emergirá no pós-pandemia talvez não seja o da cosmópole multicultural solidária, como seria lógico acontecer, e sim o do recrudescimento dos nacionalismos racistas, em âmbito global, e dos individualismos classistas, em âmbito local.

Que desgraça.

Mas, entre o pessimismo de que o mundo se tornará pior depois que a crise do coronavírus passar (Agamben, com razão: o recrudescimento do controle biopolítico) e o otimismo de que não haverá como sustentar mais esse modus vivendi capitalista-ocidental obsoleto (Žižek, com razão também: a possibilidade de retorno da palavra comunismo à agenda ocidental), resta a experiência da tensão, própria da filosofia trágica, e seu correlato riso tragicômico, pela desconfiança de que o que ocorrerá mesmo será que ele permanecerá a mesma porcaria maravilhosa, numa permanência mutante, como não poderia deixar de ser, e mutante conforme o ritmo da ampulheta do ser destinado ao humano, ser incontrolável por seu arbítrio, ainda que produto também de sua ação consciente e inconsciente.

A propósito de otimismo e pessimismo, duas ilusões antropocêntricas, gostaria de concluir com uns versos do Gil, que fazem a síntese, na maior simplicidade, de Parmênides e Heráclito (vamos combinar, o cara, para fazer a síntese de Parmênides e Heráclito com simplicidade, é um gênio).

Gilberto Gil na veia:

“Não me iludo.”
“Tudo permanecerá do jeito que tem sido.”
[a saber:]
“Transcorrendo, transformando...”

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Anotações de quarentena III

O sequestro do último adeus

Publicado originariamente no 
Le monde diplomatique/Brasil 
no dia 24 de março 

Jason de Lima e Silva

Se, sob o sol, nada mais velho e vil que a morte,
quem viu, na vida, novidade em estar vivo?
Belchior, Até mais ver, 1993

     A morte é uma ruptura para quem fica. Para quem vai, pouco se sabe. O mistério grava o coração das diferentes culturas: aparece na poesia, no canto sertanejo, longe da retórica enfadonha dos pastores. A ruptura da morte significa, por um lado, a impossibilidade de se reencontrar a pessoa, ao menos em carne e osso, aqui na Terra. Por outro lado, significa a fatalidade de o morto já não ser outro além de tudo o que pôde ter sido. Mesmo que saibamos possuir um limite finito de vida, imposto pela natureza, nem sempre é bem-vinda a ideia de que a nossa hora chega e, algumas vezes, traumática a consciência de que se foi para sempre alguém que amamos. Pode, sem dúvida, conceder a morte o devido descanso a uma pessoa, como se costuma dizer, “não morreu, descansou”, como forma frequentemente de aliviar mais a nossa alma do que a dos mortos. Os sofrimentos que nos inflige a vida suscitam, em certos momentos, a impressão de que a morte seja uma libertação, um repouso, um alento ao que deixa de fazer sentido, sobretudo quando a dor se torna a regra, e não a exceção, durante a existência. Requiescat in pace: repouse em paz, diz o epitáfio latino. Isso contudo não retira a tristeza de quem fica, a sensação de que lhe foi roubada do horizonte da existência uma companhia, ainda que para o vivo possa também representar um alento, quando é o caso, por exemplo, de se ver livre das responsabilidades e dos sacrifícios em relação àquele que regularmente sofria. Mas ao contrário de resignação e alívio, pode a morte exigir a ação de quem permanece neste mundo, pela revolta contra uma injustiça, a exemplo de Hamlet, ao ouvir do fantasma de seu pai que sua morte foi planejada, um complô homicida, para lhe tomar o trono. As composições do rapper Sabotage traduzem, em várias passagens, a revolta e a perplexidade do que significou a partida dos amigos e irmãos do Canão, sua comunidade: “até o Loquinho não se despediu de mim, deixou sozinho, parte do Canão Deus levou." (País da fome). Sabotage também não se despede dos amigos, é assassinado. Ao crente ou ao cético, o absurdo é posto a nu quando ceifada toda a promessa de vida na flor da idade: “notícia ruim, tive que ser forte, trouxe-me saudade a imortalidade” (País da fome, 2016). Para isso serve fundamentalmente o luto: uma demora para o espanto que permanece, e se modifica. O luto é o tempo necessário de reconciliação com o mundo, porque é justamente o mundo, como diz Freud, que no luto “se tornou pobre e vazio” (Luto e melancolia, 1917). Os rituais fúnebres são, na maior parte das vezes, apenas um breve caminho de uma longa despedida. Qual o sentido do luto, aliás, senão justamente o de sopesar as diferentes impressões afetivas e metafísicas para quem fica sobre quem foi, a propósito de tudo o que há e o que deixa de ser?
     Duas histórias de nossa cultura são emblemáticas a respeito do direito e do dever dos ritos fúnebres. Elas nos chegam dos gregos. A história de Antígona de Tebas, filha de Édipo, e a história de Príamo, rei de Tróia, mais precisamente a cena de seu encontro com Aquiles, seu inimigo. Antígona é um drama trágico escrito por Sófocles, representado em 442 a.C.. Príamo, pai de Heitor, aparece na Ilíada de Homero, o poema épico do século VIII a.C. Comecemos por Antígona: a lei de Creonte, rei de Tebas, não é persuasiva o bastante para impedir o ímpeto de Antígona de prestar as honras fúnebres a seu irmão, Polinices. Nem sua irmã, Ismene, consegue demovê-la, assim como Hémon, filho do rei, não consegue convencer o pai de suspender o edito e a condenação. A esse drama antecede a história de Polinices e Etéocles, irmãos de Antígona. Polinices se junta a cidade de Argos e entra em guerra contra Tebas, após ser traído pelo irmão Etéocles, que não lhe cede o trono, segundo um acordo de alternância no governo da cidade. Ambos morrem no combate, um pela mão do outro. Para Creonte, novo rei de Tebas, Polinices é um inimigo da pátria, por isso a proibição de sepultá-lo, sob pena de morte: “não receba sepulcro nem lágrimas”, determina o rei. Para Antígona, antes de qualquer coisa, Polinices é seu irmão, a lei de Creonte é apenas um decreto, e as leis às quais a jovem deve obediência, em contrapartida, não são propriamente leis escritas, fadadas à contingência do tempo e às urgências da cidade: “não são (leis) de hoje, nem de ontem", diz Antígona, "mas são sempre vivas, nem se sabe quando surgiram": são uma imposição sobretudo das divindades subterrâneas, leis portanto, divinas. Se um irmão atacava Tebas e o outro a defendia, como diz Creonte, a lei dos mortos, responde Antígona, é igual para todas e para todos. Além do que, Antígona se diz não gerada para odiar, mas para amar. A heroína é flagrada pelos guardas do rei em prantos diante de Polinices: verte três vezes vinho sobre seu corpo, como forma de libação, e lança sobre ele um punhado de pó ressequido da terra. Cumpre, portanto, os ritos elementares de despedida e é por essa razão presa e condenada pelo rei. Valer ler a tragédia.

Nikiforos Lytras, Antígona diante da morte de Polinices, 1865

     A segunda história, o encontro do rei Príamo com Aquiles, é contada no 24° canto da Ilíada. Aquiles já havia vencido Heitor, filho do rei troiano. Já havia ultrajado seu corpo, ao arrastá-lo inúmeras vezes amarrado em seu carro, para que Heitor não pudesse ser reconhecido e glorificado como herói em Tróia. Aquiles faz essa barbaridade toda para vingar Pátroclo, seu íntimo amigo, que havia morrido pelas mãos de Heitor. O fantasma de Pátroclo, aliás, aparece a Aquiles para lhe pedir um funeral menos apressado, sem o qual não conseguiria se juntar às almas dos mortos. Que o fogo, portanto, consuma de vez meu cadáver sobre a pira e que meus ossos sejam guardados em urna, e que junto a essa urna estejam os teus ossos, Aquiles, quando morreres: para que sejamos juntos sepultados. Eis o desejo de Pátroclo. No 24° canto da Ilíada, Aquiles recebe Príamo à noite em sua tenda, no acampamento próximo ao palácio. O rei se prostra diante do inimigo, abraça seus joelhos, em sinal de súplica, “beija as mãos assassinas que tantos filhos lhe mataram", no verso de Homero. Príamo invoca a lembrança do pai de Aquiles, que em terras distantes sente falta do filho, sofre por ele. Ambos choram. Príamo por seu filho. Aquiles por seu pai, mas também por Pátroclo. Por fim, Aquiles restitui o cadáver de Heitor ao rei troiano, dentro de um esquife, para ser recebido pelos seus conterrâneos nas honras fúnebres. São episódios emblemáticos de nossa cultura, porque lembram o valor de um corpo cuja presença já nos deixou. Era comum entre os gregos, vale acrescentar, colocar uma moeda entre os dentes do falecido, um óbolo, antes de ser cremado ou enterrado. A moeda servia de pagamento a Caronte, o barqueiro que conduzia as almas por um rio divisor de águas, entre os vivos e os mortos, até a margem oposta, templo de Hades. Luciano de Samósata, no século II de nossa era, já julga supérfluas, e um tanto ridículas, as cerimônias fúnebres: lavar e untar o corpo com os melhores perfumes, depois os gemidos, as lamentações, os murros no peito, as libações com vinho puro, a opulência dos túmulos, tudo isso é excessivo por uma razão evidente: a maioria considera a morte “o maior dos males" (Luciano de Samósata, Os funerais, c.185 d.C.). Embora possa haver caprichos, e mesmo exageros, o ritual é apenas uma preparação para o luto que continua e se transforma no coração de quem fica.
     Velado o corpo, basta enterrá-lo. Isso, claro, se tudo vai bem. Quando a normalidade vinga, a exceção da morte é rapidamente resolvida. Em uma sociedade moderna e capitalista como a nossa, os seguros cobrem tudo: a preparação do corpo e a cerimônia de adeus são terceirizadas. Quem pode pagar, mantém a visão das coisas fúnebres à distância. Assim como os velhos são mantidos à distância, porque fatalmente invocam aquilo com o que, em geral, a nossa sociedade não quer se comprometer. Um livro vale a pena ser lembrado, publicado em 1982. A solidão dos moribundos, de Norbert Elias, título pelo qual o problema já se explicita: os vivos, cada vez mais, pressentem a morte como coisa “contagiosa e ameaçadora”. Mas quando, ao contrário da normalidade, é a exceção que vinga? Nem o destino dos mortos parece garantido. 
Das duas, uma: ou o velório, ou o sepultamento, não são mais possíveis. A despedida é interrompida, não se pode ver nem velar a imagem da pessoa, de um irmão, de uma mãe. Ou ainda, não se tem como, nem onde, enterrar seu corpo, ou alguém para fazê-lo. Isso aconteceu na Itália, em razão do coronavírus: proibição e multa por participação em velórios, cadáveres em casas e apartamentos, a angústia de seus parentes para encaminhá-los à cremação ou ao cemitério. Isso aconteceu na maior cidade do Equador, Guayaquil, com o colapso de seus hospitais e necrotérios, a fratura do sistema público e sanitário, a falta de caixões e de coveiros. Nada disso à toa. A política de austeridade implantada pelo presidente Lenín Moreno, submisso ao FMI, não dá suporte à saúde pública, perverte os dados alarmantes, militariza a província de Guayas e a declara, fim de março, Zona de Segurança Nacional, quando efetivamente o governo já perdia a conta dos óbitos em razão do inimigo sem pátria que, por sua vez, é capaz de ampliar a subcidadania dos vivos aos mortos. Se o corpo não permanece em casa por dias a fio, ele encontra seu leito na familiaridade da rua, na calçada em frente, infectado e interditado do sepultamento. Sem direito à cova, o quinhão que não falta sequer ao pobre, em tempos normais: "É de bom tamanho, nem largo nem fundo, É a parte que te cabe deste latifúndio" (João Cabral de Melo Neto, Morte e vida severina, 1955).
     Esse é um dos lugares de perplexidade no qual nós nos encontramos durante uma pandemia: a ausência do velório, o sepultamento interditado. Não apenas em uma pandemia, mas no olho do furacão de um governo do lado da morte, o que torna o desafio de viver duplamente perigoso. Paisagem já devastada por nosso necroliberalismo tropical: cada um por si e ninguém por todos. E ainda temos de lutar contra as informações falsas reproduzidas e enviadas pelo exército mercenário de robôs, mentiras creditadas e propagadas por seus fiéis, como uma tecnologia ideológica de edição de imagens e discursos, capaz de usurpar os dados da realidade, mais catastrófica para a civilização do que o vírus para a natureza. Culpa-se o comunismo chinês pela difusão da doença e não se pergunta por que vangloriam um país, como os Estados Unidos, no qual uma massa de gente vende o pouco que tem para pagar o leito de um hospital, por que no nosso país se cortam bolsas de pesquisa da universidade, por que se paga mal as enfermeiras e falta segurança e equipamentos para o trabalho, por que perdura uma emenda constitucional que congela o investimento público da saúde, por que foram dispensados os médicos cubanos: por que são médicos ou por que são cubanos? Guayaquil é aqui, só não queremos ainda ver. O novo ministro da saúde, para piorar a cena, considera não haver muito sentido o investimento em respiradores pulmonares. “O que se vai fazer com isso depois?”. O Exército já consulta as prefeituras sobre o número de covas e cemitérios, no mesmo momento em que muitas cidades e estados brasileiros reabrem shoppings e igrejas. Manaus recém adotou o sistema de trincheiras para o enterro em valas coletivas. Que faremos? “Vamos às atividades do dia: lavar os copos, contar os corpos e sorrir a essa morna rebeldia”. (Criolo, Lion Man, 2011). Vemos em contrapartida a política na sua pulsação originária, os movimentos sociais no comprometimento solidário e educativo, como os sem-terra e os sem-teto, a auto-organização das comunidades periféricas, como Paraisópolis. Uma das coisas que nos humaniza é a consciência da morte, a morte contra a qual resistimos, individual e coletivamente: por isso a invenção das artes e coletivamente: por isso a invenção das artes e ciências, por um lado, e a da política e justiça, por outro. A percepção da beleza e a busca do conhecimento precisam de uma medida a partir da qual a comunidade humana minimamente se entenda para, primeiro, sobreviver, e que assim encontre e compartilhe, se possível, a alegria de viver entre outros seres. Humanos ou não humanos, vivos ou mortos. Não somos os únicos nem os últimos seres deste planeta. E talvez a nossa vontade e a nossa soberba, o fascínio de nossa produção e de nosso consumo, o ruído de nossas máquinas e o esgotamento das fontes naturais, seja tudo isso o que menos importa para o mundo continuar não apenas a girar, mas a produzir significados, no campo ou na cidade. Coisa que somente a cultura pode fazê-lo, como eco de um passado que expande sentidos estéticos e comunitários: no alimento recolhido da terra, no canto religioso africano, na língua indígena ou no vernáculo latino da prosa de um violeiro. "Deixemos de coisas, cuidemos da vida, Senão chega a morte ou coisa parecida, E nos arrasta moço sem ter visto a vida" (Belchior, Na hora do almoço, 1974).