Cinema em Pensamento

A Rosa Púrpura da Filosofia no Ensino Médio

Por Fernando Maurício da Silva
Como ensinar filosofia no ensino médio? O psicologismo pedagógico tende a partir do próprio “mundo comunicativo” dos educandos. Filmes são excelentes exemplos. Mas o problema que sempre se coloca é saber “qual o valor didático e pedagógico de um filme?” O filósofo típico diria que é preciso começar respondendo o que é um filme, a projeção, a tela de projeções, etc. Insistamos no exemplo. “Você sabe, no escuro daquele cinema, olhando para aquele pedaço de tela iluminado pelo seu talento, senti pela primeira vez na vida que não estava sozinha”, dizia em carta uma espectadora de um filme de Tarkovsky, em 1990. Mas trato do filme A rosa púrpura do Cairo, dirigido por Woody Allen em 1985. Teria este filme valor pedagógico? O que ele ensinaria de filosófico? Serão muitas as respostas. Em todo caso, o que faz um filme para ser educativo? Todos sabem: o filme projeta imagens na tela, oriundas da ficção de produtores e escritores. Assim Platão acusara Homero e Hesíodo, ensinando que não se deve confiar em imagens, por não serem reais. Mas a pergunta se recolocará: o que é uma ficção e qual seu valor pedagógico? O psicologismo pedagógico dirá: é como um sonho, embora um “exercício de criatividade”. Então toda questão consiste em saber se a educação pode ensinar os jovens a passarem dos sonhos à realidade. Mas o que é sonhar? Será realmente um fenômeno psicológico? Em caso positivo, como explicar a analogia entre o cinema e o sonho, e como entender aquela espectadora de Tarkovsky que se sentia menos solitária diante o filme? E em que ponto a educação diz respeito ao sonho e à solidão? 



Solidão é estar em algum lugar com ou sem os outros, em que falta algo mais. E assim como o filme passa na tela, o sonho se passa em algum lugar. Chama-se a isto de espaço virtual, pois nem no sonho nem no filme há lugar propriamente. Por isso mesmo o sonho tem que se projetar na tela. Mas há algo mais. O filme diz algo ao espectador solitário, assim como ao homem é dado apenas sonhar sozinho. É possível contar um sonho. No contar o sonho, cada solitário entrega o algo mais sonhado ao outro, sendo esta projeção verbal o inicio do talento cinematográfico. Assim como o bom sonho leva a dizer “foi só um sonho, mas quero sonhar novamente!”, o sonho bem narrado diz “conte novamente!”. Mas o que alguém ensina ao outro quando relata seus sonhos? Ensina que sabe contar, mas, sobretudo, aprende que sua solidão é intransponível. E assim começa a vocação do educador: aquele que aprende na experiência solitária de não poder ensinar. Não se pode contar ao outro o onírico de um sonho, mas se pode transferir a solidão do sonhador, como fez Tarkovsky. Neste sentido, o educador conta um sonho quando ensina. Assim se pode compreender a projeção onírica do filme: nele se projeta a construção de um cenário e a educação é o sonho de construir um cenário social. Mas tanto o sonho quanto a construção são sempre uma vontade livre. Houve quem a chamou de Autonomia, em oposição à opressão como negação da essência humana de "ser algo mais" 1. Mas também houve quem afirmou, igualmente em nome da autonomia, que “a bela aparência do mundo do sonho, em cuja produção cada ser humano é um artista consumado, constitui a precondição de toda arte plástica” 2 ou da Estética da Educação (Schiller). A solidão e o sonho não são atribuídos ao filósofo por acaso: são também atributos essenciais da autonomia e liberdade, porque sonho e solidão são um e mesmo fenômeno, com a diferença de que um está na tela e o outro na platéia, como em uma dialética professor-aluno. Portanto, os elementos que compõe a educação são estes: projeção, solidão, narração e escuta.
A pedagogia carrega consigo três preconceitos: que a educação é uma técnica da psicologia do desenvolvimento, que ensinar é comunicar, e que o educando é uma entidade moral. Ignora-se que o educando já sonha realmente, que os sonhos dos educadores são moralizações da educação e que os sonhos são solitários. Não basta fornecer ao educando o direito de falar, é preciso direito de ser escutado. Quem sabe escutar faz o sonhador contar mais uma vez: só assim o onírico passa a uma “compreensão” da própria solidão. E quem assim se compreende quer ser novamente escutado. Só então sua fala diz a “educação”. Escutar é educar quando se escuta o desejo de ser escutado, não o desejo de falar. Certamente é a palavra o veículo da educação, mas não apenas a fala. O escutar é um deixar dizer que, ouvindo o dito tanto no falado quanto no calado, escuta o que efetivamente se está a dizer. Com isso se prepara tanto as condições para o conhecimento quanto para a consciência do desconhecimento em si. Disso não se segue que a educação abandonou a disciplina e a civilização moral, pois o mero direito comunicativo é o princípio da barbárie. Moral? Sim. Mas como respeito ao “sonho” alheio, como direito à solidão. Filosofia no ensino médio? Talvez, desde que antes haja respeito à solidão que não se ensina. É preciso aprender a assistir “filmes”, depois ensinar a filosofar. Todo educador é como Tom Baxter: é preciso tornar os seus sonhos, os sonhos de Cecília. Ninguém procura na educação outra realidade, mas outros sonhos que dêem sentido ao fato de cada um sonhar sozinho. Assim se transpõe a educação e o conhecimento.
1 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 12ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. p35.
2 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p25.