Arte e Pensamento

Luta e sonho de liberdade
Por Jason de Lima e Silva

Podemos olhar mais uma vez o quadro já tantas vezes visto de Delacroix, A Liberdade conduzindo o povo, para talvez ver algo ainda não visto a respeito da revolução na história da França e para pensar qual a tarefa da liberdade num mundo que quanto mais promete coisas, menos entende o sentido do que significa ser livre.
É difícil haver outra pintura na história da arte que traduza tão bem o espírito revolucionário francês, embora não se trate de um quadro sobre a Revolução francesa, mas sobre a Revolução liberal de 1830. A estrutura triangular da imagem tem o braço da mulher erguido como o ápice do polígono imaginário, o braço que ergue a bandeira tricolor, a bandeira que volta à cena após um período de absolutismo monárquico, a Restauração. A luz entra pela margem direita iluminando o fundo de uma cidade (Paris) e centralmente a protagonista com sua face rosada e seus seios à mostra. A luz também alcança os corpos em primeiro plano ao chão e outros personagens menos ou mais acentuadamente. A cena corresponde ao instante no qual o levante em massa ultrapassa uma barricada, a barricada que os sanscullotes já haviam aprendido durante a grande Revolução e que na pintura é usada em uma guerra civil, em 1830, como defesa contra as tropas de um rei considerado tirânico: Carlos X. A barricada é um assunto por excelência moderno e não é por menos que Delacroix assina seu nome em um dos barrotes à direita na tela. “Abordei um tema moderno, uma cena de barricadas... e, se não lutei pelo meu país, pelo menos pintei por ele”, escreve o pintor numa carta a seu irmão, que era general. Vale lembrar que o recurso à barricada é usado em 1848, contra a coroa, e também no maio de 1968, contra o modelo social de vida e de trabalho durante a política de Charles de Gaulle. A barricada é uma especialidade francesa: pedras, madeiras, lixo, tudo serve à barricada que em pouco tempo modifica o palco da cidade.
       Ferdinand-Victor-Eugene Delacroix, A liberdade conduzindo o povo, 1830

A Liberdade conduzindo o povo é o registro de um acontecimento contemporâneo, de uma guerra de barricadas nas ruas, de uma revolta popular e burguesa com pretensões revolucionárias, cujas contradições não deixam de ser visíveis na imagem: o avanço e a morte, a glória e o medo, a justiça e a pilhagem (deduzível dos soldados sem botas e sem calças, das bolsas de munição usadas pela criança e pelo homem à extrema esquerda). A Liberdade de Delacroix é uma mulher seminua, com braços grossos, um belo rosto, é a liberdade do povo, quando povo, associado à nação, era um conceito revolucionário desde 1789. A personagem está descalça sobre a barricada, trazendo em uma das mãos o símbolo nacional da França e da Revolução, a bandeira tricolor e, em outra mão, o símbolo da guerra na cidade e no estrangeiro, o fuzil moderno. É uma Liberdade humana e, ao mesmo tempo, um ideal assumido na história revolucionária da França e para além da França: o ideal dos pensamentos e das ações livres entre os homens, o ideal da virtude inscrito no coração humano, o ideal que, como tal, ultrapassa a história, as fronteiras geográficas e o próprio humano do homem.
O único personagem de Delacroix que parece ver a Liberdade está prostrado diante dela e talvez prestes a morrer, quando no mundo fora da pintura Luís Felipe I assume a coroa como o rei liberal: o filho de Felipe Égalité da primeira revolução. A imagem mostra o fervor quase alucinado do povo, incluindo crianças. A radicalidade da revolução é movida por um ideal de todos e de ninguém, ou melhor, por uma ideia que todos desejam, mas cujo preço nem todos querem ver ou reconhecer. O brilho no rosto dos personagens revela uma cegueira que a ação exige quando o instante e a possibilidade de mudança pertencem à massa. O terreno da política e da história é sempre incerto. A arte de Delacroix está sobre esse terreno. Os fins da justiça não garantem a justiça dos meios, seja do lado de quem quer suprimir a revolta ou do lado de quem quer continuá-la. Mas às vezes a história espera por ela, ou seja, por nós, e é preciso contar com a massa para lutar ou se manifestar contra o que nos oprime, seja um regime político, um modelo econômico ou um modo de vida.
Um fato é certo: sem luta não há liberdade. A liberdade assegurada constitucionalmente não dá conta de sua realização no mundo. O direito à liberdade não faz ninguém livre. Como ser livre sem a condição material para um mínimo de dignidade ou sem a capacidade de pensar por si mesmo o que é capaz de fazer de sua vida? Mas o que significa ser livre? Há muita gente que não suporta viver sem um chefe, por mais que o odeie. É fazer o que se quer? A vontade de fazer o que bem se quer não nos livra de pensar o quanto suportaremos querer depois de feito. É poder comprar ou ter coisas? Comprar qualquer coisa ou tê-la à força não responde à complexa dimensão do que significa ser livre, já que o mundo dos objetos deixa ainda em aberta a tarefa de saber o que se quer da própria vida: e não há outro que possa nisso nos substituir, nem pagando. Somos menos ou mais livres porque vivemos com outros e os outros nos dão a abertura e o limite de nossa liberdade: nada está absolutamente dado, nem resolvido enquanto vivemos.
Enquanto as propagandas dizem a todo tempo você pode, o mundo atual revela conflitos e diferenças sociais, e mostra a impossibilidade de muita gente compreender o que pode ainda ser feito, além da sobrevivência ou do consumo. Sem dúvida, é preciso lutar contra as pequenas e grandes opressões que nos são impostas, em razão de abstrações como o sistema e o mercado, ou de realidades como o privilégio injusto de alguns e a farsa de que todos podem o mesmo: ter o que é oferecido. Sem sonhos não vivemos, é claro, mas mesmo os sonhos se tornam produtos! Chegam prontos sem precisar que os sonhemos para fazê-los do mundo, e outros sonharem. E são poucos os trabalhos que nos exigem arte e concentração, em compensação muitos são os que nos pedem produtividade e servidão. “Livre de quê? Que importa isso a Zaratustra! Mas claramente deve teu olho informar-me: livre para quê?”. (F. Nietzsche, Assim falou Zaratustra). Livres do que nos impede de sermos ou fazermos qualquer coisa, uma pergunta permanece: para que estamos neste mundo?



EXCURSOS HISTORIOGRÁFICOS



Jayro Schmidt*

No que acredito, quando acredito em uma alma no homem?
No que acredito, quando acredito que esta substância
contém dois anéis de átomos de carbono?
Em ambos os casos há uma imagem no primeiro plano,
mas o sentido está em segundo; isto é,
não é fácil deixar de ver o emprego da imagem.

Wittgenstein, Investigações filosóficas



Espancador

         A vida artística e eclesiástica de Roma e Nápoles, na passagem do século 16 para o 17, teve que conviver com o pintor Caravaggio, considerado um caráter duvidoso. Ele, na realidade, foi um homem violento, sempre envolvido em rixas que o levariam à morte prematura, aos 37 anos.
         Como qualquer jovem artista daquele tempo, Caravaggio foi para Roma, mas, em 1606, após matar um homem por causa do resultado de uma partida de tênis, fugiu para Nápoles, também uma cidade à altura de suas expectativas.
         Nápoles, durante a monarquia de Habsburgo, havia sido replanejada e preservava as festas populares que conhecemos desde a Idade Média e o Renascimento, e através, principalmente, da literatura de Rabelais. A cidade, então, se parecia com um cenário não somente para as manifestações religiosas que atraíam os menos favorecidos e toda sorte de pessoas marginalizadas. As cidades italianas, diga-se de passagem, foram construídas como se fossem palcos exigidos pela tradição e pelo desenvolvimento urbano. Apesar disso, tal cultura social e econômica não queria resolver os ruídos da cidade, os miseráveis que eram considerados emanações demoníacas capazes de cometer todos os crimes.
         Pois foram estes ruídos urbanos que sempre atraíram Caravaggio desde o início da adolescência, ele mesmo um homem das ruas e irado contra as injustiças. Como pintor, ele foi, em consequência, o mais violento crítico da hipocrisia eclesiástica e da subserviência e mediocridade de tantos artistas. Não foram poucas as vezes que espancou artistas durante discussões, o que deve ter deixado seus cérebros mais confusos ainda. Mas essa violência tem outros aspectos.
         Além de ter sido um tema central em sua obra, a violência foi também, por assim dizer, exposta na carne e no sangue da matéria pictórica afastando-se deliberadamente da abstração religiosa na pintura, substituindo-a pelo sofrimento real daqueles que vão ser os seus definitivos personagens como, por exemplo, em a “A morte da virgem”, cujo modelo foi uma prostituta grávida que se afogou no rio e que o pintor resgatou e estendeu sobre a mesa do ateliê.

A tela Davi com a Cabeça de Golias.
A cabeça de Golias é, na verdade, um autorretrato de Caravaggio

         Toda esta exposição da brutalidade da vida seria melhor pensada como encenação em Caravaggio, pois se ele violentou normas eclesiásticas chamadas barrocas, sua pintura é o palco que desnuda a violência daquela mesma sociedade. Nas qualidades visuais irregulares do barroco característico de Caravaggio, de completa dramaticidade e sentimento de impermanência, encontram-se assim um pintor anti-barroco.  Então Caravaggio aparece na cena de Davi e Golias, autorretrato com a cabeça decepada, e no que se convencionou chamar “tenebrismo” em sua pintura, a luta terrena entre luz e treva que seus seres híbridos exigiam a exemplo dos anjos com asas negras, e, com um toque de ironia, Baco que resiste à moralidade religiosa e se mostra, subentendido, em pênis e vagina.

Agachada

         A precocidade artística, a relação com Rodin e os transtornos passionais eclipsaram Camille Claudel. Ela viveu até 1943 internada e antes internalizada na obra erigida em pedra e em bronze. Obras que contrastam com as de Rodin, mestre e amante, embora isso somente pudesse ser constatado depois, quando o neoclássico escultor foi reconhecido maquiado de modernismo.
         Não restam dúvidas que Rodin queria igualar-se a Victor Hugo, mas o pior é que ele queria ser Miguelangelo! Camille Claudel queria ser ela mesma, e foi com uma qualidade intempestiva próxima da filosofia de Nietzsche. É claro que foi reprovada por chegar a tanto, sobretudo com a mulher agachada, não de joelhos, com mãos que mostram o horror de sua época ao esconder o rosto.
         Durante as últimas barricadas, e com as agonias utópicas de Saint-Simon e de Fourier, Camille teve que buscar argila, e teve seus primeiros desvarios que seu irmão poeta, boi cristão, tentou amenizar. Rodin e Paul Claudel foram revisionários, Camille foi revoltada ao plasmar na argila a desobediência que nela estava e se apresentou com a eletricidade do caos que a tudo pode dar sentido e o que sentia era o ferimento ao moldar a matéria de uma imagem que soçobra, a carne precária da vida, o corpo que resseca, o humano que fede como um bode.

Camille Claudel – Mulher agachada – 1884-1885


         Nenhuma utopia aqui, nada. As pequenas mãos de Camille esculpiram mãos, lição para o mestre que lhe deu o pedaço de mármore ao ingressar em seu ateliê. As mesmas mãos que se veem envelhecidas de Camille sentada no hospício, mãos que deveriam segurar um punhal.

Lágrima

         Durante o último internamento, no hospício de Saint-Rémy, van Gogh pintou um velho sentado em uma cadeira, curvado e com os cotovelos nas pernas, as mãos apoiando o rosto e cobrindo os olhos.
         A pintura é simples e comove pela fixação da tinta praticamente empastada, aliás de acordo com a imobilidade da imagem do homem quase ausente de si mesmo, em perda de identidade com o mundo.
         Naquele hospício não havia ninguém que pudesse dizer por que van Gogh pintou o homenzinho sentado sem mais poder retornar a ele mesmo, como se sua imagem fosse o prenúncio de respostas clínicas que somente décadas mais tarde seriam dadas, sobretudo por Lacan.
         A lágrima, corpo dissolvendo-se através do corpo para abreviar o dilema humano, sempre foi um tema recorrente na arte desde os gregos. E quem chora dobra-se sobre si mesmo, quer retornar enquanto dele irrompe a dor, o desespero, a amargura.
         Até mesmo Pablo Picasso, tão solar como Matisse, pintou alguém que chora, e uma mulher que estava no café que frequentava em Paris, Les Deux Magots. A jovem de sobrancelhas espessas, olhos azuis-claros e cabelos escuros, Dora Maar, correspondeu ao seu insistente olhar enquanto cravava um canivete entre os dedos da mão esquerda. Algumas vezes ela errou e, aos poucos, sua luva preta decorada com pequenas rosas foi tingindo-se de sangue.
Cultuada pelos surrealistas, Dora Maar fotografava e tornou-se amante de Picasso. Costumava dizer que era sua “musa particular”, sempre disponível aos caprichos do artista. Dois anos depois, em 1937, Picasso fez seu primeiro retrato, a célebre imagem da mulher chorando, retorcida e com intensos contrastes simultâneos, em cores complementares, que atraem o olhar em direções opostas.
A beleza de Dora Maar, como se a arte fosse a expressão do paradoxo, acabava de ser revertida pelo sadismo de Picasso. Ela era radiante, feliz, mas o pintor achava meios cruéis de fazê-la chorar para simplesmente apanhar o caderno e desenhá-la. Muitos destes esboços foram transformados em pinturas e intensificados com a realização de “Guernica”, um protesto contra a crueldade dos homens! Conclui-se que Picasso não era afetado pelas contradições e não se constrangia em tornar público o que era privado.
Pablo Picasso - Mulher chorando - 1937

Estaria Picasso exorcizando fantasmas com as lágrimas de sua amante? A própria Dora Maar foi quem melhor explicou ao relembrar suas faces, para ela, todas de Picasso. O crítico de arte John Berger reafirmou-a: “Picasso só pode ver plenamente a si mesmo quando refletido numa mulher”.
As coações passionais de Picasso a Dora Maar levaram-na a distúrbios a ponto de atingir o delírio, oscilando entre a mania de perseguição e o êxtase místico. Ela chegou a exigir que Picasso se arrependesse dos pecados cometidos ajoelhado a seus pés. O artista, amigo de Lacan, arranjou o internamento em sua clínica, sendo tratada durante três meses e, em seguida, analisada.
Para Lacan, que estava chegando ao mais obscuro no psiquismo, o delírio de Dora Maar representava uma profunda crise de identidade que havia pensado depois das teorias de Freud, o que chamou de “identificação alienante”, ou seja, a formação da imagem pessoal através de tantas imagens do mundo exterior, fragmentadas e circunstanciais. O que Lacan estava demonstrando era o espelho de Dionísio, que uma vez nele refletido não viu seu rosto, mas o mundo, concluindo assim que o ego é “uma força inautêntica” que resiste à perda de unidade, de inocência subliminar.

Identidade

         A privacidade e a simpatia por duas vanguardas europeias, o cubismo e o surrealismo, contribuíram para que Ismael Nery fosse mantido à margem do Modernismo Brasileiro. Sua obra na pintura, portanto, não teve o compromisso com o nacionalismo apregoado por Mário de Andrade e Oswald de Andrade, que significava, nos anos 1920, atualizar a inteligência artística brasileira em oposição às vanguardas internacionais.
         Apesar disso, a pintura intimista de Ismael Nery, ou vista sob o prisma de sua subjetividade, em grande parte deve ser interpretada como a expressão da vontade também antropofágica do iberismo, na qual ele não estava isolado, talvez somente na pintura, pois temos as presenças dos poetas Jorge de Lima e Murilo Mendes.
         Ismael Nery também foi poeta, e sua pintura, com a atmosfera metafísica, tem sugerida a escrita das imagens. Ao reunir duas esferas limítrofes, a do sono e a da vigília, percebe-se o quanto suas imagens são  automáticas e pensadas como livre associação de matérias com as quais somos feitos na passagem do consciente para o inconsciente, e o retorno, sempre o retorno para que, enfim, se possa eximir o conflito dos contrários.
         O fato de Ismael Nery ter juntado cubismo e surrealismo lançou contra ele o descrédito. Não se admitia tal façanha que somente um artista quântico poderia ousar. E ele ousou neste aspecto ao querer aproximar as vontades mais afastadas em sua mente, o que lhe confere uma dimensão filosófica na pintura com o rigor cubista e o descomedimento surrealista. O mesmo ocorreu com Marc Chagall nos primeiros anos em Paris, e com Lasar Segall no Brasil, porém cubista e expressionista.
         De qualquer maneira, para tantos artistas que surgiram depois das primeiras vanguardas, reunir em uma mesma obra várias linhas artísticas não significava disparate, mesmo porque nos precursores reuniam-se materiais estranhos aos convencionais da pintura. Uns não foram além do ecletismo e outros encontraram as suas próprias soluções como são os casos de Lasar Segall, Anita Malfatti e Ismael Nery. Mas Segall e Malfatti levaram ao público suas pinturas, sendo atacados, respectivamente, por Mário de Andrade e por Monteiro Lobato. O primeiro em favor de Portinari, que se reportava ao regional, e o segundo por ter considerado, aliás, enganosamente, que Malfatti representava “paranoia ou mistificação”, empurrando-a à frustração e ao anonimato. Lobato concordava com o que os fascistas e os nazistas estavam impondo em países europeus, inclusive com as confiscações de obras. Uma exposição de Segall no Brasil, por outro lado, foi taxada de lazaretto na campanha difamatória do jornal carioca “A Notícia”, em 1939, e por ter sido incluído na exposição “Arte degenerada”, organizada pelos nazistas na Alemanha em 1937, que atribuíram aos artistas de origem judaica um distúrbio, associando doença e arte moderna. A campanha contra Segall foi repudiada por Vinícius de Moraes, Jorge Amado, Moacyr Werneck de Castro e José Lins do Rego. Mário de Andrade, obviamente, preferiu o silêncio.
         Ismael Nery, que viveu alheio ao público e à crítica, evitou tais decepções, fazendo da pintura um lugar inexpugnável, quase uma utopia, de religação consigo mesmo. Aliás, em 1928, ele pintou “O encontro”, visualização de sua poética onírica com as imagens do simulacro como fantasmagoria.
         O simulacro em Ismael Nery tem as características do sono lúcido, no qual o eu está diminuindo a distância entre a vigília e o sono, que se correspondem. Tanto é que na pintura, e para inscrever o dilema da identidade não somente com imagens, ele anotou no canto inferior à direita da pintura, com uma ponta seca retirando a tinta molhada sobre a camada anterior seca, as seguintes palavras:

         Meu caro Ismael
         Não sei por que qualquer
         Homem que vejo me parece você

         Ao dirigir-se ao nome que a ele foi dado, presume-se que seu corpo foi adquirindo outros nomes até chegar a ser outro, o corpo que dele foi exilado. Nota-se também que a palavra você é menos perceptível, talvez pelo incômodo de se escrever no vértice da tela e com menor quantidade de tinta, mas não se pode deixar de pensar que este relativo apagamento responda a uma certeza que apenas tem de ser vivida, e que permanece como lapso ou imposição do esquecimento para que se tenha a lembrança de algo que iniciou, mas logo foi ocultado por uma série de fatores exteriores à vontade do sujeito, embora a ocultação não implique o desaparecimento daquele algo que, isso sim, ainda não tem imagem e nome, visibilidade e legibilidade.
         A encenação na pintura de Ismael Nery indica que de alguma forma ele percebeu que algumas vanguardas substituíram o figural imitativo pelo figural semiótico, assim tendo em “O encontro” a imagem adequada para fazer da representação tradicional em arte uma apresentação do drama pessoal em torno da identidade no signo e suas propriedades que oscilam do sinal ao símbolo como se observa no casal mais próximo, com pouca distinção entre o homem e a mulher, a primeira figura com a mão esquerda estendida ao casal adiante, que é o mesmo casal em projeção, a mão magnética quase o tocando, o que lembra a impostação, a regeneração do elo esquecido ou perdido. Este casal, pela conformação dos corpos, distingue o masculino do feminino.

                                        Ismael Nery, O encontro 1928

         E pouco importa se esta operação mental seja escatológica, sublimadora e coisas do gênero. Neste ponto, que exprime a formação do psiquismo, Ismael Nery estava no lado oposto em que se situava Marcel Duchamp, este um artista que gradualmente abandonou a arte metafísica ao concluir que o ser é uma ficção, portanto, uma ideia.
         Entre as obras de Duchamp, a que mais manifesta a questão da identidade ao lado de Mona Lisa de bigode e cavanhaque, é “Rrose Sélavy”, na realidade um trocadilho, eros é a vida. Certa vez, com a sua incorrigível mania de mudança, ele resolveu trocar de nome, e não encontrando um satisfatório na lista que fez, chegou à conclusão que era mais fácil mudar de sexo. Nascia “Rrose Sélavy”, a foto de Man Ray, de 1920, na qual se vê Duchamp travestido em parisiense mundana, com ares de viajante e jogadora, sortista até. A partir daquele ano, Rrose já nasceu adulta, Duchamp realizou obras assinadas por ela, todas de cunho libidinoso que beiram a pornografia. Mais tarde Duchamp corrigiu-se ao comentar que não quis mudar de sexo, apenas a identidade.

Mônada

         Com o gradual afastamento da abstração do divino na pintura, no auge da expressão barroca a arte tornou-se um dos meios de pensar a imagem como dilema humano, terreno. Afinal, a revolução copernicana havia atingido todas as formas de conhecimento e todos os sistemas, hierárquicos pela própria natureza de seus princípios, foram sendo implodidos.
         De Caravaggio a Rembrandt a pintura investigou o que se passava na subjetividade, sem perda de contato com a objetividade e em repercussão do privado no público. Caravaggio estava no começo destas dobras e Rembrandt na extensão máxima e por contágios futuros em pintores expressionistas ou mesmo metafísicos. Ambos, mais que outros barrocos, fizeram do espectador um cúmplice de suas imagens através do esfacelamento de hierarquias, dando lugar a eventos que não se repetem, mas que se equivalem.
          Não são poucas as obras barrocas de cenas exteriores, embora sua tendência ao interior, físico e psíquico, tenha sido levada a consequências artísticas que transbordam como ato de pensar a profundidade na superfície. Na expressão estava o mistério da formação da imagem para fora de si enquanto voltava-se para dentro. Interiores de meditação, pintura que medita, às vezes de luz filtrada e de curva da escada – metáfora de um lugar indestrutível para o homem de Rembrandt, mônada de Leibniz.

                                      Rembrandt, O Filosofo 1632



          Rembrandt, ainda jovem, foi abalado pela perda repentina de sua mulher Sáskia, e, desde então, foi transferindo o que tão cedo chegou e partiu para um limite quase imponderável, mas ali ainda, no visível mais visível de sua pintura com a luz sempre afastando as trevas ao revelar a perda, a dor, o ferimento. A luz acariciando as coisas para deixá-las, pintura que se despede do contingente amalgamado nos objetos de sua afeição, objetos que quanto mais palpáveis mais têm a aura do invisível, aquela veladura que se pode ver e não tocar, a imagem fugitiva da imagem. E nessa imanência que transcende, o visível em um fundo infinito como se a ausência fosse uma presença, todas as coisas são significantes e tudo foi tratado com o mesmo desvelo, com a mesma força. Rembrandt sem hierarquias, pois sua pintura levou-o do absoluto ao relativo e fez dele um pintor da solidão, do solitário que permanece no invisível.

Carne

         Francis Bacon, pintor irlandês que viveu no século passado, queria fazer “pintura clínica”, isto é, pintura a mais próxima do realismo. Quanto mais próxima, explicou, mais se sentia longe de si, embora esse distanciamento não implique uma arte impessoal, objetiva apenas e sem ser fria, provocadora de sentimentos os menos toleráveis, mas inevitáveis.
         Nada é mais baconiano do que suas imagens em metamorfoses orgânicas e psíquicas. Ao dizer “pintura clínica”, Bacon pensava que poderia expressar como de fato as coisas são em ganhos e perdas de integridade, de força, de energia. Por isso ele solapava as aparências com a antecipação de outra visibilidade, o estado futuro dos corpos no que lhes pertence, que neles está e vai se manifestar, ou já se manifestou. Se há alguma impessoalidade em Bacon, esta é a da inevitabilidade e instabilidade da linha direta entre vida e morte.
         O emprego de materiais e instrumentos tradicionais da pintura não quer dizer que Bacon tenha descurado a importância do conceito e suas versões na experiência. Pelo contrário. A confiança na intuição, na sensação e no acaso era sua convicção sobre a ideia, o que lhe confere uma pintura não somente retiniana, para os olhos. Ideias que foram pintadas com “disparadores” que o atingiam por meio de obras da pintura, da literatura, da fotografia e das coisas propriamente ditas. Ésquilo, Shakespeare, Velásquez e Buñuel, entre outros. Imagens de obsessão, recorrentes sob outras formas, “Inocêncio X” de Velásquez, e de Ésquilo a frase que traduziu, ou melhor, adaptou: “O cheiro de sangue humano não desgruda seus olhos de mim”.
         Era com satisfação catastrófica que Bacon apreciava o fotograma do olho sendo cortado de Cão andaluz, e, com mais satisfação ainda, quando ia ao mercado para se deter diante das postas de carne no açougue. Rembrandt havia pintado o boi esfolado com a jovem que descortina a cena, van Gogh não pintou a borboleta caveira porque não podia matá-la, e, mais próximo de Bacon, Soutine pendurava pequenos animais mortos em seu ateliê para acompanhar a decomposição e a putrefação, pintando-os, paradoxalmente, com tanta vivacidade.
         Nas conversas com Franck Maubert, Bacon não comentou estas referências extremas da arte, apenas van Gogh dos corvos e, depois de Picasso, o grito de Munch. O “clique”, diz ele, foi Picasso, que o chocou visualmente com as enormes mulheres na praia. “Naquele momento tive uma sensação estranha”. E teve vontade de pintar, sem, contudo, obter alguma coisa satisfatória, em seguida percebendo que não seria uma emoção estética que o levaria ao substancial, o que aconteceu quanto se deparou, em Londres, com um açougue nas lojas Harrods.

Não sabemos por que determinadas coisas nos tocam. É verdade, adoro os vermelhos, os azuis, os amarelos, a gordura da carne. Somos carne, não é mesmo? Quando vou ao açougue, acho sempre surpreendente não estar ali, no lugar dos nacos de carne.

         Arrebatado por esta evidência desconcertante, como se a sensação fosse o primeiro impulso lógico da linguagem, Bacon obteve o que precisava para disparar suas imagens, pintura com cheiro de sangue e carne.

É um instinto, uma intuição que me leva a pintar a carne do homem como se ela se espalhasse para fora do corpo, como se ela fosse sua própria sombra.

         Franck Maubert não foi o primeiro a enfatizar que Bacon tinha um homônimo especial, o filósofo Francis Bacon, pioneiro da ciência moderna na confluência dos séculos 16 e 17. No ano das conversas com o pintor, 1982, não se conhecia De vis mortis et de senectute retardanda, atque instaurandis viribus, Sobre os meios de morrer, adiar a velhice e restaurar as forças vitais, pois o manuscrito havia sido descoberto na Inglaterra e publicado em francês em 1984. O texto de observação e descrição científicas, conforme Maubert, “veio fortuitamente esclarecer e pôr em correspondência o trabalho do pintor com o do autor, seu grande ancestral”.
         O acaso que aproximou Bacon pensador e Bacon pintor fica por conta da própria sorte, já que certas mentes, em épocas diferentes, pensam nas mesmas coisas com métodos analógicos ou que diferem entre si. Correspondências não faltam e nada quiméricas. A Schelley lhe parecia que um grande poema estava sendo escrito por vários poetas ao longo do tempo, epopeias e elegias, e em Borges, ao pensar em Kafka, a suposição de que alguns livros deveriam ser anônimos porque são reescritos em sucessivas gerações.

Francis Bacon, Autorretrato 1971

          O parentesco entre as observações empíricas de Bacon pensador e as expressões de Bacon pintor sobre a morte não se limita a um ou outro caso. O Bacon pensador constatou que alguns corpos evolam. Corpos que se tornam ocos, ressonantes, ásperos, emaranhados, nos quais se observa a migração com a atenuação e a fuga da matéria. Nos corpos mais flexíveis, compactos e porosos, a migração tem a definição mais provável do que ocorre depois da vida: “o espírito não encontra passagens e meios pelos quais evolar-se secretamente, mas impele claramente para diante de si as partes espessas que ele estendeu e modelou, e as impele com violência para a superfície do corpo”.
         Dos experimentos empíricos de Bacon pensador, este é o que mais situa a pintura de Bacon, como se a mesma fosse interpretação ou ilustração das reflexões de seu ancestral. Enquanto o filósofo visou o estudo da “boa morte”, o pintor visou a “pintura clínica”. Na dissolução dos corpos perdem-se as aparências habituais e aparecem outras, estranhas, as mesmas da pintura de Bacon ao sacrificar o aparente, indo além do normal da coisa, porém mantendo a aparência do dissoluto. Seria isso a ação do espírito em Bacon pensador? “O espírito”, diz ele, “não apenas atenua e amolece, como também, às vezes, separa e divide, ou então, inversamente, às vezes une as coisas e as mistura”.

Mitificação

           Sobre Marcel Duchamp existem estudos insuperáveis e há o comentário nuclear de Guillaume Apollinaire ao dizer que nele estava sendo suplantada a problemática estética com a energia. Por outras palavras, da realidade da visão, Duchamp deslocou-se para a realidade do conhecimento, tornando-se o artista mais influente do século 20. Das declarações sobre ele, a mais completa, e de acordo com seu espírito de inovação, foi a de seu amigo Henri-Pierre Roché: “Sua melhor obra é o uso que faz do tempo”.
         Por esta, e por outras razões, Joseph Beuys não subestimou o silêncio duchampiano. Um ócio criativo? O prosseguimento do que muito importava a Duchamp, a ética artística construída deliberadamente, o que acabou sendo pensada como mitologia do artista com a arte geracional e a crítica genética.
         Beuys acreditava que nas circunstâncias pessoais estavam os elementos suficientes para que alguém pudesse tornar-se histórico ao forjar-se em corpo oferecido de vontades e conceitos, que age para mudar o mundo, ou, pelo menos, a linguagem. Em suas circunstâncias principais encontram-se a guerra, matérias elementares e a perda de contato com a natureza. Catástrofe e redenção, para não dizer apocatástese da tendência messiânica de pensadores e artistas nórdicos.
         Com estes fatores físicos, químicos e mentais, Beuys foi ao encontro à sua mitologia que ocupa todo o espaço e o tempo da consciência. Durante a infância amou os animais e, como Cimabue, tornou-se pastor; na juventude estudou medicina com a intenção de se dedicar aos humildes, mas, aos 22 anos, em 1944, ao sobrevoar a Criméia em neve, seu avião foi abatido; gravemente ferido, inconsciente por alguns dias, foi cuidado pelos tártaros, que o aqueceram com gordura animal e feltro enrolado em seu corpo; Joseph voltou à vida, e, depois de retornar e ser abrigado em uma fazenda na Alemanha, pensou que havia nascido de “uma ferida contida com esparadrapo”, e “enfrentou uma crise profunda, familiar a todos os grandes artistas”.
Com esta bagagem, Beuys começou a elaborar os princípios de sua arte e se dedicou ao ensino. Sempre disponível como artista e pedagogo, Beuys integrou à arte a obra da fala e a obra da escrita. E sua legenda tornou-se um paradigma entre os alunos e o público em geral: zeige deine Wunde, mostre a sua chaga. A cura somente poderia ser iniciada com este gesto, com o exemplo dos animais, que se curam por conta própria, com as assinaturas da natureza, na qual o semelhante cura o semelhante, tudo como experiência artística de reanimação.

*Jayro Schmidt é artista plástico e escritor





Francis Bacon e Caravaggio: o duplo de si mesmo

Por Jason de Lima e Silva

Vê-se a imagem desfigurada de um homem: ele se vira para uma superfície na qual um rosto se separa de si mesmo. É o Retrato de George Dyer num espelho, pintado em 1968 por Francis Bacon. O espelho abre uma fenda no rosto, tão deformado quanto o corpo, embora seja possível ver um personagem sentado, aparentemente de pernas cruzadas, de paletó e gravata. Há uma linha branca verticalmente inclinada que faz em dois também o corpo do modelo. O rosto de George Dyer, ao se voltar para trás, encontra a imagem que não é sua, a imagem de um rosto interrompido, ou ainda, duplicado no duplo do espelho. Três anos mais tarde, Dyer, o companheiro de Bacon, suicida-se. Interrompe-se a vida de um homem, mas Bacon o continua pintando, como no Tríptico, maio-junho, 1973: cenas do terrível momento da morte do amado. Um homem nu se desintegra entre seu vômito e seu sangue no interior de um banheiro cujo fundo é negro. George Dyer foi encontrado de fato morto no banheiro de seu quarto de hotel: uma hora antes da retrospectiva de Bacon no Grand Palais em Paris, em 1971.

 Francis Bacon, Retrato de George Dyer num espelho, 1968

O Narciso, de Caravaggio, se apoia à beira do lago, quase adormecido sobre a imagem que encontra na superfície escura da água: a imagem do duplo pela qual apaixonadamente se entorpece até a morte (a palavra Narciso em grego se aproxima de narke, entorpecimento). Conta Ovídio, em suas Metamorfoses, que Narciso se espanta e prende o rosto imóvel no momento em que se vê. No seu nascimento, quando perguntado se a criança teria vida longa, o velho adivinho Tirésias profeticamente respondeu: Si se non noverit. "Se não se conhecer". Mas Narciso se conheceu sem querer e sem querer quis quem conheceu. Ao beber a água, "ama a esperança sem corpo, julga ser corpo, o que sombra é": spem sine corpore amat, corpus putat esse, quod umbra est, no verso de Ovídio. O amor de Narciso por sua sombra anuncia seu fim como amante e prepara sua metamorfose como flor de Narciso. "Oxalá eu pudesse de nosso corpo me separar", lamenta o jovem num certo momento. Já que é impossível amar o outro que descobre ser ele mesmo, já que é impossível se duplicar para amar quem vê refletido na fonte, nada mais resta senão a morte. No extremo de seu desejo, a morte o reintegra à unidade da natureza. A imagem do belo rapaz na fonte chama Narciso no silêncio do bosque e ele morre pelo outro que não alcança, pelo outro que é si mesmo: o amado amante, a sombra de sua ilusão sem fim.
 Michelangelo da Caravaggio, Narciso, 1599

O olhar casualmente voltado para trás de Dyer ao espelho não encontra o mesmo, o mesmo que já não se mostra como tal, porque, na realidade, o senhor George Dyer não era o que, efetivamente, o seu retrato nos mostra. Ainda assim, Bacon nos mostra alguma realidade (bem vemos ali um homem sentado, um espelho, o reflexo). A impressão caótica no jogo das formas expressa o que na aparência não se mostra igualmente a todos: o próprio sistema nervoso do artista. Bacon diz a seu amigo David Sylvester, numa das entrevistas, que suas imagens querem ser fiéis a seu sistema nervoso e que sua pintura tem a ver com seu desespero eufórico, sua psique. A desfiguração de Dyer na repartição de seu duplo no espelho expõe o desespero de Bacon, a sua alma cheia de nervos, que como artista quer capturar a imagem do outro em seu movimento, ou seja, em seu limite e em sua estranheza, na dor ou no prazer, por isso distorce e dilacera seus modelos, lançados como estão pintor e modelo no mundo entre a aparência que se modifica e a aparição que se mostra. O eufórico Caravaggio, violento muitas vezes, pinta com lirismo (e naturalismo) o seu Narciso cerca de 1599 e, embora menos acentuadamente dramático que outros de seus quadros, a suspensão de um torpor erótico não livra o personagem da fatalidade que a tradição conhece. O Narciso de Caravaggio vive o instante de sentir-se ébrio de amor quando à fonte foi cessar a sede e outra sede nasceu, como canta o poeta. E no instante de virar seu rosto, vemos George Dyer cindido na duplicação de sua imagem. Enquanto Narciso é seduzido pelo duplo, só superado na interrupção do desejo pela própria morte, o retrato de Dyer duplica seu rosto no espelho que o reflete ainda vivo para a pose. Vivo então, mas já repartido.

 Francis Bacon, Tríptico – maio-junho, 1973 (detalhe)
Narciso encontra no outro o extremo de um desejo cujo fim só a natureza redimiria ao suprimi-lo, ao unir-se à sua impossibilidade. Dyer é desde sempre outro que não ele, o duplo de seu retrato num espelho: o mesmo desespero de Bacon, ao qual não foi possível impedir-lhe a morte entorpecida por barbitúricos. O suicídio não revela unicamente o fracasso diante da própria existência, mas uma forma de idealização de uma vida que não é possível viver, diante da qual a vida real se torna uma sombra insuportável. Muitas pessoas desistem da vida pela imensa vontade de viver uma existência que nunca foi possível, mas sempre sonhada e até o limite esperada (ou duplicada até a morte do único, o real que se tornou desprezível para o outro representado). Um homem pode esperar o pior de sua realidade, mas suportá-lo realmente é outra coisa. O desespero do artista talvez faça de sua arte a esperança provisória, e necessária, contra a violência natural da vida: para ver e expressar o instante que nos escapa da alma das coisas. A experiência da dor, nesse caso, serve de meio e fonte ao fazer de uma arte que possa ultrapassá-la, ou ao menos permiti-la como dor: não desejada, mas inevitável. Mas dor e arte parecem apêndices de prateleiras num mundo de tantas anestesias e entretenimentos. Há ainda lugar para o humano do homem, numa sociedade que valoriza clones e fantasmas cuja intimidade tão pouco se suporta quanto pouco ao mundo tem algo a dizer e a mostrar?
 Francis Bacon, Retrato de George Dyer andando de bicicleta, 1966







Arte e Felicidade 

Por Jason de Lima e Silva

É fato que na maior parte das vezes as pessoas queiram ser felizes: queiram viver bem e se sentir bem enquanto vivem. E não é novidade que muito se lucra com isso. Uma evidência de tal lucro está na ampla literatura comercializada, grande parte pouco literária é verdade, de um gênero de salvação que veio a se chamar autoajuda, com títulos e subtítulos que prometem revelar o segredo de uma vida feliz. Isso para alcançarmos e mantermos aquele estado de satisfação que a felicidade parece nos dar, estejamos sós ou com outros. Mas se sentir verdadeiramente feliz não é coisa tão fácil, pois, se assim o fosse, não haveria à nossa disposição tantas drogas da felicidade, tantos doutores para indicá-las, tantos laboratórios para fornecê-las e drogarias para vendê-las. E realmente não parece simples ser feliz em um mundo cada vez mais saturado de trabalhos, conectado de carências, perturbado de informações, disperso de distrações, perdido de memórias, pobre de boas histórias. Mundo com pouca arte e pouca sensibilidade, embora com muita parafernália e truculência. Pouca reflexão e ponderação, mas muita pressa e insatisfação. Pouco ouvido para muito barulho, pouca visão para o excesso de imagens, pouca tolerância para as diferenças e quase nenhuma paciência para pensar.



Essa primeira imagem conta uma história interessante, já contada há cerca de dez séculos antes da pintura, na História de Heródoto (c. 485 a.C. – 420 a.C). O rei Creso hospeda, no seu palácio em Sardes, o sábio legislador Sólon de Atenas. Após alguns dias, Creso mostra seu tesouro a Sólon e lhe pergunta quem considera o homem mais feliz do mundo. Sólon responde: Telo de Atenas. E conta que, além de uma fortuna considerável em relação a seu país, Telo teve dois filhos belos e virtuosos e morreu heroicamente numa guerra. E depois de Telo? ― pergunta o rei. Sólon conta a história de dois irmãos atletas, Cléobis e Biton: certa vez, puxaram por um longo trajeto o carro no lugar dos bois que tardavam a vir do campo, com a finalidade de levar a tempo a mãe a uma comemoração em honra à Hera. Ao chegar, a mãe pede à deusa dar a seus filhos a maior felicidade que pode um mortal alcançar. Após o festim, os jovens foram encontrados adormecidos no templo de Hera para nunca mais acordar. Indignado, Creso pergunta a Sólon se considerava indigna sua felicidade comparada à desses homens comuns sobre os quais falava. “Ó Creso – argumenta Sólon – perguntais-me o que penso da vida humana”. Sem muita escolha, Creso ouve uma aula de filosofia. A vida humana não é senão vicissitudes, diz Sólon como resposta ao rei, e nada é mais comum do que a desgraça na opulência e a ventura na obscuridade. E por isso é difícil julgar se alguém é ou não feliz antes de sua morte, embora possa ser uma pessoa de sorte. (História, Livro XXXII, Clássicos Jackson, 1950).

O rei não gosta nem um pouco de toda essa conversa. Na irônica representação barroca de Gerrit van Honthorst, Creso aponta para si (porque espera que o sábio Sólon o aponte), porém Sólon, um grande homem simples, aponta para outro lugar: para a vida de homens que já se foram e deixaram seus exemplos. Ao lado direito do rei, o guarda ri com sua mão esquerda sobre a boca, como se compreendesse a lição daquele sábio legislador, descalço com seu bastão. Ao lado desse guarda, vemos ainda uma figura fantasmagórica, um senhor de túnica, assim como outras figuras ao fundo do centro à direita da tela, como espectros que vêem e procuram ouvir a cena principal. Há ainda outro guarda, uma serva e um escravo, mais visíveis para nós. Sólon quer apenas dizer ao rico rei, quase como um amigo, que a felicidade não nos está garantida, mesmo a quem se mostre feliz ou sinta-se feliz ou, no caso extremo, pretenda que outros a considerem uma pessoa feliz (e quantas pessoas não querem se mostrar mais felizes do que são!). Creso, aliás, não apenas esperava ser chamado feliz por Sólon, mas o mais feliz dos humanos. Queria que Sólon confirmasse o que supunha ser evidente, o que seus tesouros já diziam, assim como sua corte, seus escravos, seu domínio sobre outros povos: vós sedes o mais feliz dos homens, ó Creso! Sólon sabia disso e, justamente por isso, recusa-se a bajular o rei. Essa recusa de bajulação revela a sabedoria do filósofo, afinal, se Creso fosse efetivamente feliz, precisaria que alguém o dissesse? Claro que não, bastaria a si mesmo.



A felicidade é um fenômeno raro e difícil de nossa vida, assim como o amor. Na gravura de Max Klinger, um casal é arrastado ao céu por um anjo, os corpos envoltos por um manto, e os olhos da amante presos ao rosto do amado, ambos mais próximos do sonho do que da realidade. Na vida real, os momentos de felicidade não nos chegam nunca de graça: é preciso esforço para nos dar a graça de um momento na vida, nos ócios ou negócios. Inquieta ou serenamente, manter-se inteiro consigo e com outros dá trabalho. O filósofo Comte-Sponville chega a dizer que há um desespero na felicidade: mínimo de esperança e máximo de esforço (A felicidade, desesperadamente, Martins Fontes, 2005). Desespero para não se esperar os desejos inalcançáveis e para se desejar o mais possível de realizar a cada tempo da vida, sem vãs esperanças. E o que não realizamos? É parte ainda de nosso desejo, se não for encoberto com culpas e desculpas.

O que nos faz feliz facilmente escapa de nossas mãos, seja porque já foi e não nos demos conta enquanto era, seja porque sofremos por esperar o que nunca acontece. Idealizar o que queremos, sem criarmos condições para o que podemos, faz de nossos sonhos ilusões de uma vida infeliz. Os sonhos se tecem em silêncio. E é preciso esforço para dar sentido a uma vida que não pedimos e sensibilidade para reconhecer o proveito do que passa. Afinal, é quase um refrão ouvirmos e pensarmos com tristeza: eu era feliz e não sabia. Ou ainda, com humor, durante um sufoco: pior não pode ficar. Como não temos comando de tudo o que nos acontece, é bom contar com o pior no pior, sem se fazer escravo das circunstâncias ou vítima das injustiças (o mundo não chora por nossas mazelas, mas amigos por perto nos dão segurança).



Beethoven, que nesse belo desenho mais se assemelha a um deus bravo do que a um ser humano feliz, numa carta a seus irmãos diz que o infeliz se consola quando encontra uma desgraça igual à sua. A experiência de sua surdez e o malogro dos médicos para curá-la, obriga-o, ainda muito jovem, ao afastamento da sociedade. Somente a arte o livra do suicídio, porque precisava produzir aquilo que sentia ter-lhe sido confiado. “Recomendai a vossos filhos a virtude”, escreve na carta aos irmãos. “Só ela poderá dar a felicidade, não o dinheiro, digo-vos por experiência própria. Só a virtude me levantou de minha miséria. Só a ela e à minha arte devo não ter terminado em suicídio os meus pobres dias.” (Testamento de Heilligenstadt, 1812). Virtude e arte. Beethoven estava com 26 anos. Doze anos mais tarde ele terminaria a 9ª. Sinfonia e em 1827 viria a falecer. É chavão dizer Beethoven é um gênio, mas quem já ouviu sua música o suficiente para se entusiasmar, enfurecer-se, rir-se, sentir os tímpanos abrirem e fecharem, um estremecimento nos nervos, e o peito apertar? Quem se importa com a música de Beethoven hoje em dia? A sensibilidade e a inteligência não se constroem sem educação. Nem o bom humor. Rir muito não é ser feliz, é ser eufórico ou estar nervoso. Rir apenas dos outros pelo que são, é supor-se superior. Rir com outros, é fazer amigos. Rir de si mesmo, uma sabedoria. Rir de qualquer coisa, uma estupidez. “Irrita-me a felicidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes. A sua vida humana é cheia de tudo quanto constituiria uma série de angústias para uma sensibilidade verdadeira”. (Fernando Pessoa no Livro do desassossego, Companhia das Letras, 1999). Há alegrias da vida que não precisam se mostrar: são mais vividas do que vistas. Quem se julga rei porque se deu bem ou feliz pelo poder conquistado (muitas vezes à custa da desgraça de outros), pode a qualquer momento se desgraçar, e assim acontece ao rei Creso na história que Heródoto continua. Isso porque a vida humana não é senão vicissitudes. Como não é razoável contar inteiramente com a sorte, nem desprezá-la por qualquer motivo, melhor é fazer com virtude o que fazemos, e isso Aristóteles já nos lembra antes de Beethoven: para melhor aproveitar os favores do destino e mais firmemente suportar os desfavores do mundo.





Arte e Melancolia
 Por Jason de Lima e Silva 
O pintor está à esquerda do quadro de cabeça baixa, o braço esquerdo apoiado na cadeira, as pernas cruzadas, a tela em branco. Um mundo absolutamente sem vida está diante dele: sua própria tela. De suas costas sai um exército de criaturas humanas, quase todas armadas de lanças e punhais, crianças, homens, velhos. Esse batalhão luta, mas é atingido, enfrenta, mas é impedido, e à medida que o olhar caminha para o centro da imagem, a força da tropa se reúne e se dispersa ao mesmo tempo. Vemos as figuras perto de uma grande janela serem como que rebatidas por outra força, uma força cuja imagem se apóia no outro lado do parapeito, a mão direita próxima ao rosto coberto, a mão esquerda a empurrar uma das janelas de vidro: a imagem dessa força está toda vestida de negro. Melancolia é o nome da pintura do polonês Jacek Malczewski.

Jacek Malczewski, Melancolia, 1890-1894

Melancolia em grego quer dizer literalmente bílis (cholé) negra (mélas). Há uma tradição desde Hipócrates (460-377 a.C.) que pensa esse fenômeno tanto físico quanto psíquico: “Se tristeza e medo duram muito”, escreveu o médico, “tal estado é melancólico”. Em tal teoria médica, a saúde ou a doença dependeriam do equilíbrio ou desequilíbrio dos quatro humores: sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra. Um pouco mais tarde, Aristóteles diz ser a bílis negra um humor que altera do muito frio ao muito quente e vice-versa. E por ser inconstante a potência dessa mistura, inconstantes são os melancólicos, já que o humor frio geraria a tristeza e a apatia, ao passo que o humor quente produziria a loucura e a exaltação sexual. A constância dessa inconstância faria o homem de gênio. E o Problema XXX de Aristóteles é se perguntar por que os homens de exceção são melancólicos. E melancólicos teríamos de entender não apenas tristes, mas impacientes, esquivos, temperamentais, violentos algumas vezes. A arte para o artista talvez seja o lugar de luta e acalento da melancolia, arte sem a qual sua vida e seu humor se tornam insuportáveis. No final do século XIX, Nietzsche fala de uma fisiologia da arte. O que importa saber é como dos humores do artista, e da luta entre seus instintos, acontece algo cujo significado se põe além do próprio artista como indivíduo humano, fadado a paixões e a ocupações da vida ordinária.
A Melancolia de Malczewski abre a janela para uma paisagem que parece outra pintura. Apenas alguns homens se aproximam da personagem de negro, mas mesmo esses homens,  que lembram sábios, profetas e religiosos, não chegam a tocá-la, nem tentam vencê-la. Somente um deles levita sem ser impelido. Está logo atrás da mulher vestida de negro: é uma exceção. Toda a luta contra a melancolia parece inútil. O mais sábio dos sábios talvez consiga, no máximo, manter uma proximidade que revela o reconhecimento da distância de forças: de um lado, a necessidade de meditar, de outro, a bílis que ao mesmo tempo entristece a alma e inquieta o corpo. A imagem da pintura mostra a luta na fronteira de uma obscuridade que não é apenas a do pintor em seu ateliê, mas a de nossa própria vida. Não escolhemos a melancolia. Ela é quem nos escolhe. Não pede licença, não avisa quando vem, nem quando vai embora. Podemos ocultá-la com centenas de distrações que o mundo cada vez mais oferece. Mas ela retorna mais insistentemente ainda, e mais forte do que esperávamos. E para aquele que pressente uma tarefa muito própria, como sua tarefa muito própria, não há escapatória. Terá de lutar menos contra a bílis negra do que com ela, acostumar-se a recebê-la em sua morada: é o caso do artista. “Sempre voltas, Melancolia, / Mansidão da alma solitária. / Por fim arde um dia dourado,” canta o poeta Georg Trakl em 1913 (De profundis, Iluminuras, 1994).
                                                
                                                 
    Giorgio De Chirico, Melancolia, 1912

Há outra pintura, feita em 1912, com a qual podemos aprender sobre melancolia. Uma estátua feminina no centro da cena: o cotovelo sobre um apoio, a mão junto à cabeça inclinada. Mais ao fundo, duas figuras que parecem distantes de um mundo quase inumano. Não sabemos se vão ou vem, mas vemos suas sombras se projetarem além da linha do prédio ao lado do qual passam. No pedestal da estátua vemos uma inscrição: Melanconia. A luz entra da esquerda para a direita na tela, um pouco inclinada, e vemos ainda a sombra de um pilar no primeiro plano, a sombra da estátua no centro e, entre uma e outra, uma sombra que não sabemos de quem seja. Apenas nos dá a impressão de estar à frente do pilar mais próximo. Nessa sombra talvez esteja todo o mistério da pintura. Ela descola nosso olhar para um lugar que encobre quem ali possa estar sem que possa ser visto. A melancolia da estátua depende dessa forma escura e, ao mesmo tempo, a silhueta de alguém nesse mundo estático contempla a estátua, cuja veste cobre uma dor que se volta para si, uma dor humana, aquecida por uma luz em alusão ao pôr-do-sol. É provável que estátua e sombra encontrem seus olhares no desassossego de uma única e mesma intimidade. A bílis negra é a sombra que a estátua reconhece e a estátua é a melancolia que a sombra pressente. O assombro de uma mesma duração: aqui a eternidade de uma tristeza, ao fundo, a passagem do tempo dos passantes, no instante de um pôr-do-sol.   Um ano após essa pintura, De Chirico escreve: “Para tornar-se imortal, uma obra de arte deve sair completamente dos limites do humano: a lógica e o bom senso só farão interferir. Desse modo ela se aproximará do sonho e da mentalidade infantil”.
                Em 1917, Freud escreve um belo ensaio chamado Luto e melancolia. Ambos os estados envolvem um longo trabalho interno para separar a libido do objeto perdido. No caso do luto sabe-se o que foi perdido, no caso da melancolia não, mesmo que o sujeito saiba quem tenha perdido. Um dos sintomas do melancólico é um intenso desprezo por si mesmo. “No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio ego”. Na fronteira da doença, o melancólico pode estar bem próximo de compreender a si mesmo. Freud aprofunda muitas questões, mas poderíamos lhe perguntar como da pobreza e do vazio do ego nascem grandes obras de arte. Desinteressado de si e incapaz para a vida, pode o melancólico ocupar a força que lhe resta com algo ainda não feito no mundo, pouco importando o interesse alheio. Claro, o que faz a grande arte do artista não é pouco, mas são muitas as circunstâncias, a começar por sua obstinação de criar algo além da média menos ou mais medíocre. E nisso vai uma vida que, às vezes, vem precoce como a do poeta Rimbaud. Embora a intuição da poesia não exija tanta técnica quanto, por exemplo, a pintura o exige, as artes dependem de uma e outra, intuição e técnica. E no fundo de ambas, um silêncio que a todos nós pertence, muitos dele fogem, poucos o recebem, e menos ainda são o que transformam o incômodo de ser em obra de arte capaz de fazer alguma diferença para si, quando não para o mundo.
                Em nossos dias tendemos a negar o que aparentemente é negativo, tal como a melancolia. Mas não seria terrível um medicamento que nos deixasse sempre artificialmente bem, fossem quais fossem as circunstâncias? E se ao contrario de um sintoma de algo em falta ou anormal, a melancolia (ou a depressão ou a bipolaridade, nos termos médicos de hoje) for o princípio de uma nova força e a exigência de outra direção da vida à própria vida? Na história da arte, sem contar a expressão não figurativa, há várias imagens que mostram a melancolia tal como a extremamente simbólica de Albrecht Dürer (1471-1528) e a expressionista de Edvard Munch (1863-1968). Figuras que repetem a mão apoiada na cabeça quase sempre inclinada, como sinal de introspecção e afastamento do mundo. É curioso perceber como tais imagens também estão associadas à lembrança do pôr-do-sol. Um dos momentos mais belos de O pequeno príncipe é quando o narrador diz que compreende pouco a pouco aquela pequena vida melancólica. Diante de um pôr-do-sol, o pequeno príncipe conta ao amigo aviador que uma vez viu o sol se pôr quarenta e quatro vezes, seguidamente, já que no seu pequeno planeta bastava-lhe trocar a posição da cadeira para assistir tal espetáculo quantas vezes quisesse. “Tu sabes... quando se está assim triste a gente ama os pores-do-sol.” E o narrador lhe pergunta: “O dia das quarenta e quatro vezes tu estavas assim tão triste?”. Mas o pequeno príncipe não responde.

Edvard Munch, Melancolia, 1895






IMAGENS DA MORTE

Por Jason de Lima e Silva

Pensar na morte durante a vida não é algo necessariamente mórbido: é simplesmente parte da condição humana. Ninguém escolheu nascer, mas podemos escolher não viver e, portanto, ausentar-se do mundo. Ainda que não pensemos nisso, uma questão a vida nos coloca em algum momento: para que afinal viver, que razão me mantém neste mundo? Essa questão não nos leva a querer a morte, na maioria das vezes é claro, apenas nos situa na intimidade sempre instável e problemática da existência: entre a vida que levamos e a vida que queremos viver. Se deixarmos apenas o mundo nos levar, perdemos aos poucos o que da vida queríamos fazer, a cada época vivida e convivida, e assim abdicamos de querer qualquer coisa além do que nos dá a banalidade e a obrigação de um dia após outro. Em contrapartida, se exigirmos sempre que o mundo seja tal como o queremos, por sonho ou ideal, provavelmente a vida nos conduza aonde menos queríamos ir e, no limite, arraste o mais obstinado indivíduo para o isolamento de um mundo no qual fomos recebidos por outros e esperamos não ser abandonados. O querer e o fazer da vida mudam, é óbvio, por isso não há um sentido unilateral e permanente para o que somos, mas antes, a inevitável pluralidade de sentidos entre o que deixamos para trás e o que ainda desejamos para o porvir. Não podemos sempre esperar, e nem tudo de uma só vez querer: há um limite que é, ao mesmo tempo, a condição que nos faz humanos, apesar de todas as diferenças.



O olho de Escher mostra figurativamente o limite. A gravura de 1946 intitulada Olho é a imagem de um olho que vê e é visto. O visto que se vê na pupila corresponde ao reflexo não apenas do que vem de fora, do mundo, mas do que é produzido de dentro: a reflexão da morte. É fácil pensarmos na ideia da morte diante dessa gravura porque vemos uma caveira. A caveira se espelha no olho e o olho especula a caveira. O olho pode estar assustado, surpreso ou melancólico, isso depende do espectador que o vê de fora, em todo caso vemos a caveira rir e quase podemos ouvir seu riso escancarado da escuridão cujo abismo a íris contorna. Esse riso parece ressoar a ironia de se viver a muito custo para um dia morrer. E a caveira não pode ser destruída ou apanhada porque ela aparece na perplexidade de um instante. Claro, a morte sabida é sempre a dos outros, e esse fato nos devolve o espanto de não termos o tempo para sempre, embora se conte com ele, sejamos velhos ou jovens, o que, por sua vez, faz do viver algo estranhamente único e excepcional. A loucura dos artistas é a mais lúcida das expressões humanas. Entre o visível e o invisível, a imagem aproxima o absurdo da vida. Para além do aprimoramento da técnica sobre a gravura, Escher diz ter sido tomado pela necessidade de mostrar aos homens imagens de pensamento como imagens visuais.


A associação entre a imagem da morte e a imagem da caveira tem uma história. O mosaico Memento mori de Pompeia, do século I d.C., quer dizer: Lembra-te da morte ou lembra-te que és mortal. A morte nivela a todos, por isso o nível acima da cabeça. “Morte, tu abates num só dia / O rei ao abrigo de sua torre / E o pobre em sua aldeia (...)”, diz o poema traduzido pelo professor Megale do monge francês Hélinand de Froidmont em seus Versos da morte (c. 1194), considerado o primeiro testemunho literário do imaginário da morte com clava e foice. Outras imagens seguiram na história da arte, como as gravuras de Hans Holbein (1497-1543), que mostravam algumas vezes o caráter patético de resistência à morte, fosse a de viajantes, ricos ou freiras. Nos séculos XVI e XVII surgiu o gênero Vanitas (do latim, vaidade), como a pintura a óleo de Pieter Claesz: a caveira sempre sobre uma mesa entre outras coisas, a pena, o tinteiro, o castiçal, o livro, a caveira como a memória para abrandar a vaidade das vaidades entre os homens.


A imagem da caveira ou do esqueleto é para a história da arte uma imagem do pensamento do artista, quem, como a maioria de nós, quer permanecer vivo para fazer, é bom lembrar, o que a poucos cabe: ultrapassar a sua técnica na expressão de sua sensibilidade. Conta-se que certa vez o pintor Magritte (1898-1967), perguntado pelo jornalista Charles Flamand se pensava muitas vezes na morte, respondeu: “Não, não mais do que na vida”. É uma boa resposta, porque a vida já nos dá muito a pensar, sobretudo quando levamos a sério a comédia de não podermos seguir senão um caminho no meio de muitos e aprendemos a rir da tragédia de não podermos desfazer o que já foi feito. Embora haja um destino em comum, o drama de enfrentá-lo, e também de fazê-lo, pertence a cada um de nós, porque não podemos transferir nossa morte, assim como o sentido ou a falta de sentido de nossa vida: nosso destinar no mundo. Esopo narra a história de um velho que, cansado de carregar a madeira que havia cortado, larga o fardo no meio do caminho e chama a Morte. “Por que me chamaste?”, pergunta a Morte. “Para que leves meu fardo”, diz o velho. “Por mais difícil que seja a vida”, conclui Esopo, “ninguém quer deixá-la”.

Um comentário: