domingo, 29 de março de 2020

Anotações de quarentena II


Akira Kurosawa, Sonhos (episódio O túnel), 1990


"Sob esse ponto de vista, a atmosfera de nossa cidade modificou-se um pouco. A questão, porém, é saber se na verdade a modificação estava na atmosfera ou nos corações.”

Albert Camus, A peste, 1947


A conversa volta para o assunto do dia, da hora, de todas as horas. Como uma espécie de pedra por cujo peso Sísifo pode a qualquer instante ser esmagado. As tensões familiares também retornam, tão intensas por vezes como na última eleição. Que nos acontece afinal? Quando a morte serve de princípio à gestão pública, o vírus governa a favor, e este é nosso maior risco atualmente. Não se reconhece um inimigo em comum, nega-se o grau de sua ofensiva, e ele avança. Naturaliza-se a morte na mesma medida em que se despreza o contágio. Marx fala de um exército industrial de reserva: a força de trabalho excedente à produção garante o acúmulo do capital, justifica os baixos salários e, sobretudo, a massa de desempregados, o exército de reserva do mercado. O desprezo ao contágio, em nossa necropolítica tropical, garante uma reserva de mortos ao lado dos desempregados. O milagre de se estar vivo dá a coragem para se submeter às piores condições de trabalho. Para aquele que detêm o capital e os meios de produção, não se pode deixar de lucrar, ainda que se permita morrer. Por isso a campanha O Brasil não pode parar. Um discurso cujo caráter motivacional é perigosamente bizarro neste momento. O tom cinicamente solidário dirigido ao trabalhador, a suposta preocupação com sua fome, nesta propaganda, retira justamente a responsabilidade do Estado, a obrigação de protegê-lo, ao mesmo tempo que o lança ao suicídio como herói da pátria, inviolável a uma pandemia. A questão é: entre a promessa de desenvolvimento da nação e o lucro dos ricos, quem está disposto a morrer ou quem, pela sobrevivência, já não tem escolha porque nunca lhe foi dada? Por isso pode bem facilmente o trabalhador repetir o discurso suicida oficial e até mesmo se colocar na figura do herói, ou mais modestamente relutar contra o que passa a julgar covardia. Pode de manhã se culpar pelo risco de perder o emprego, à tarde achar que é só uma gripezinha e atender uma encomenda, à noite evitar o contato com seus filhos e ter pesadelos com o vírus. Como exigir coerência dos sobreviventes neste momento? Em nome da economia, o governo não precisa diretamente matar, antes, deixa morrer. A compra anunciada pelo ministro da educação de 450 milhões de álcool em gel para as escolas se afina a essa política da morte em dois sentidos: justifica o retorno das crianças aos colégios e autoriza a contaminação em série de quem estuda e trabalha no local. Deixa-se morrer, no limite, a própria escola, sobretudo as escolas públicas. Neste sentido, a emenda constitucional que prevê o congelamento dos investimentos públicos nas áreas de educação e saúde, aprovada ainda no governo Temer, logo após o golpe, e mantida pelo governo atual, é metaforicamente epidêmica, antes de o covid-19 vingar entre nós. A falência dos sistemas públicos de saúde, o recente e brutal cortes de bolsas de pesquisa das universidades, tudo isso não é apenas efeito da contenção de gastos e despesas, mas um projeto da elite para discriminar quem pode vender e quem pode pagar, seja lá o que for, diplomas, coachings ou planos de saúde. O vírus é a necropolítica continuada por outros meios. E o neoliberalismo uma das condições para essa política fundada na iminência da morte, e não na esperança de vida. O Estado mínimo permite ao Mercado máximo a escolha dos corpos que irão lucrar ou trabalhar, enriquecer ou morrer. O que vale afinal quando somos todas e todos ameaçados, quando respirar se torna uma dádiva? Que economia é esta que se defende a unhas e dentes patrióticos, quando apenas o patrão cumpre a quarentena ou sequer mora no Brasil? Que  discursos e poderes nos resigna como operários e por que parece surda a nossa voz para exigir o direito de se ficar em casa como dever urgentemente coletivo? Se milhões de autônomos já sobrevivem normalmente no limbo pandemônico, entre a falta de emprego ou o baixo salário, o que acontece agora se o Estado não os sustenta por uma renda mínima? Por que não redistribuir o lucro dos bancos, cujos funcionários retomam seus expedientes, enquanto seus acionistas mantêm higienizadas as mãos pelos juros garantidos? Em breve, se não nos cuidarmos e resistirmos como sociedade, contaremos com um grande exército de reserva ao lado dos leitos hospitalares. Como aquele pelotão nos Sonhos de Akira Kurosawa. Obedientes mas também obstinados, os soldados seguem o comandante, querem voltar às suas casas. Estão azuis, quase cinzas, com profundas olheiras de caveira. O comandante se comove por eles, diz ter sido preso pelo inimigo, lamenta e se culpa pela derrota: “Vocês são chamados de heróis, mas morreram como cães".

Jason de Lima e Silva

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sábado, 21 de março de 2020

Anotações de quarentena I


Albrecht Dürer, Os quatro cavaleiros
do apocalipse (Morte, Fome, Peste e Guerra)
c.1497

Até para a mais perfeita beleza o desastre é lento. Mas não me parece justo contar sempre com o pior. A regularidade mede a vida. A regularidade da comida, por mais que não se pense no que se come ou como se mastiga o que se come. A regularidade dos prazeres, sensuais, afetivos, lúdicos ou intelectuais. A regularidade do trabalho e dos exercícios físicos. A permanência de um amor e mesmo a repetição de um conflito. O tédio pode servir quase de método para uma existência. Para o tédio a vida sempre se volta, no ócio de todas as suas regularidades cumpridas. Alegria também se sente, claro, pela simples razão de se cumprir um método pessoal para se viver, embora o tédio das horas livres pareça dar mais suporte à guinada da sorte do que o estado eufórico das ocupações ordinárias. Pretender antecipar o pior, em contrapartida, é desprezar a potência originária de seu significado, a do inesperado. Porque mesmo que se espere o pior que se possa imaginar, a reação frente ao fenômeno não pode ser calculada, uma vez que é impossível prever a circunstância, tanto de alma quanto de mundo, com base nas quais o fenômeno foi possível, e menos ainda as consequências de um acontecimento que, por si mesmo, já parecia insuportável. Temer desde sempre também exaure as forças humanas. Temer o que se esperaria de mal, temer o não previsto, tudo isso cansa demasiado o corpo e o espírito. Na maior parte das vezes, mesmo nas piores condições, o animal humano tem esperança. Esperança na redenção de algum deus ou na descoberta de um remédio contra uma ameaça ou dor iminente. O mais provável é se viver com aquilo com o que já se tem, segundo a força dos hábitos, no horizonte da fartura ou da escassez. Esperar muito é sofrer não ter jamais o que se espera. Porém, não esperar coisa alguma é como secar um rio e cobrir de cimento a fonte de todo entusiasmo. Que significa agora "atingir metas", "crescer economicamente" em termos individuais ou coletivos? Ainda se precisa comer e respirar. Quando se volta para si, na obrigação de ficar em casa, o maior risco é não encontrar nada. Ainda se precisa da cultura para matar a fome da alma e respirar boas ideias sobre o árido chão da terra. O humano ainda precisa do humano, a saudade de um afeto não completamente vertido sobre o coração, o hálito de uma história, o jogo, a brincadeira, o riso estrondoso, eco de seu próprio desespero.

Jason de Lima e Silva