domingo, 8 de abril de 2018

Fragmentos de um golpe. IX.

Cena do filme 12 homens e uma sentenca, dirigido por Sidney Lumet, com Henry Fonda, 1957

“Se eles não me deixarem falar, falarei pela boca de vocês. Andarei com as pernas de vocês. Se meu coração parar de bater, baterá pelo coração de vocês”. Vindo de outra pessoa o discurso poderia até soar demagógico, mas de Lula não. Ele encontra nos olhos de quem o escuta alguma verdade. Basta vermos a fisionomia das pessoas que o acompanham, do norte ao sul. Há uma vida antes e outra depois de Lula. Lula é um projeto de sociedade. Se o homem se vê agora ameaçado por uma justiça de exceção, no solo hostil e oligárquico da cultura brasileira, é porque seu projeto transformou realmente algumas estruturas sociais e morais de nosso povo, cuja origem, não esqueçamos, está fundada na dicotomia entre o senhor e o escravo, a casa-grande e a senzala, com seus graus distintos de premiação e castigo. Há uma memória da fome na barriga deste povo, há uma memória da sede que transpira na pele e na fibra quando Lula aparece. Vibra, emudece e grita na garganta como víbora do sertão. O povo pôde comprar TV de mais de 40 polegadas. E dentro da TV se conta a história que se quer contar, para vender mentiras, produzir ídolos ou criminosos, salvadores ou inimigos da pátria. Os grandes jornalecos também: imprimem diariamente a narrativa que seus “podres poderes” encaminham pelos editoriais. A família honesta de classe média, leitora de folhas e vejas, se entende capaz de julgar e de fazer crítica (entenda-se crítica ao PT). Já tinham os dados e as razões para a deposição de Dilma, agora para a prisão de Lula: os ratos saem das tocas e se transformam em juízes, policiais, cientistas políticos, segundo o impulso raivoso de suas vidas vazias em condomínios cheios de coisas. Mas há outra tecnologia de dominação sobre o povo. As igrejas evangélicas cresceram, viraram grandes empresas, dominaram também a TV. O problema não é o pastor existir e garantir os benefícios de seu deus para o lucro de um empreendimento. Nem mesmo me parece um mal salvar a alma de quem lhe concede a fé. O problema é ele querer mais, como se candidatar, ganhar uma eleição, virar vereador, deputado ou senador, e legislar contra a liberdade sexual, a dignidade das mulheres, as cotas raciais, e ainda substituir a filosofia pelo ensino religioso nas escolas, a dúvida humanizada pelo dogma divino. Nem me interessam os pastores, mas que não saiam de seus templos para fazer de suas pregações as nossas leis! Lula não fala de uma igreja, ou de um clube, ou de uma sociedade secreta. O seu discurso pertence ao domínio laico e aberto da pluralidade, ao território da política segundo a compreensão do que lhe é ao mesmo tempo contradição e esperança, antagonismo e utopia, luta e justiça, em razão da possibilidade de convivência humana pacífica, apesar de todas as diferenças étnicas e econômicas que nos separam. Ele veio do interior do nordeste para falar uma só língua, mas uma língua que fosse entendida primeiramente pelos miseráveis e pobres, desempregados e operários, uma língua que representasse essa voz muda como a sua única chance de falar, e não apenas obedecer, baixar a cabeça, pegar as migalhas que lhe sobrassem, sobreviver. A sua política pressupõe a inclusão de todas e todos, por mais difícil que seja fazê-lo, por mais que sempre se recomece, em um país expropriado por acionistas e corporações internacionais, cuja ordem interna se garante com a força da polícia ou do exército. Afinal, é o capataz quem acalma a elite brasileira. No discurso de Lula apenas não podem ser incluídos os intolerantes, aqueles que aprenderam a odiá-lo com mais dedicação do que um caso de amor, porque não aceitam o fato de um metalúrgico ter chegado ao poder e ter ampliado vagas e condições aos negros e negras, aos indígenas e trabalhadores. Se ele e seu partido cometeram erros, foram poucos perto da truculência e injustiça que é assumir a sua condenação na história, em razão de um triplex bem sem graça do qual não tirou proveito algum, ainda que se provasse dele, ainda que o quisesse e pudesse comprá-lo. Foram poucos os erros perto dos tiros que tem levado da direita, perto do que tem feito a imprensa e o judiciário com ele, um vexame de sucesso internacional. O golpe abriu a porteira para se vender o país e as suas riquezas, como nosso petróleo que a lava jato varreu a pretexto de uma guerra contra a corrupção. A memória da fome de Lula sempre será maior e mais verdadeira do que o messiânico jejum de um procurador presa da sua republiqueta. A água chegou ao nordeste, a comida ao faminto, os dentes ao banguela, a carne ao operário, a bolsa ao estudante, o concurso ao professor. Isso é real, isso não será esquecido. O que se condena em Lula é ele ter sonhado um Brasil que proíbe sonhos àqueles aos quais o dia precisa ser preenchido com pão, suor e trabalho, sem ao menos uma janela através da qual se possa aspirar algo para fora de sua classe, fadada à jurisdição do bairro, sucumbida pela sensação de impotência e fracasso perto dos filhos treinados e capacitados da classe média, como bem mostrou Jessé Souza na Elite do atraso. Classe por meio da qual se garante o curso da universidade, uma profissão bem paga, algumas viagens para o exterior e a convicção de que são melhores porque jamais precisariam de bolsa família. O Lula concreto, o Lula de carne e osso, só aguenta tudo isso, com a idade que tem, porque sabe já ser uma ideia, como ele mesmo disse. E uma ideia continua para além das grades. Mas isso não torna menos insuportável o absurdo de vê-lo na realidade condenado e preso para o gozo de uma elite medíocre que se julga superior. Nenhum remendo vai costurar essa ferida que se abriu no país. E não há como oprimir por muito tempo um povo que já se sentiu gente. Por fim, vale lembrar que o nome dos juízes que condenaram Sócrates e Mandela nós esquecemos.

Jason de Lima e Silva

11 comentários:

  1. Bela reflexão, Jason. Vou sugerir a leitura ao grupo de estudos Teoria Critica, Educação e Democracia.

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  2. Só te agradeço, Gilson! Bem legal a proposta desse grupo de estudos. Abraço, meu caro!

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  3. Belissina reflexao, Jason! Parabéns pelo texto! Opinioes na contracorrente, como a tua, nos ensinam sobre a corsgen de enfrebtsr a unanimidade, que sendo "unabime", é perigosa e tola!

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    1. Sim, Cristiano, a unanimidade pode facilmente se tornar totalitarismo. Acho que o filme,este ao qual a imagem se refere,não citado no fragmento, trata exatamente disso,do perigo do juízo unânime e precipitado.

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  4. Perfeito, amigo Jason! Estamos juntos! Como eu escrevi anteontem na minha página do facebook, veja a situação em que nos encontramos: o candidato ao prêmio Nobel da Paz e a maior liderança política da América Latina, sem prova de qualquer crime e num atropelo de vários artigos da Constituição, preso por um fanático religioso que jejua e ora pela prisão de seu inimigo político, um criminoso que se safou ao pedir excusas por ter vazado áudio da presidência no maior canal de televisão do Brasil e por uma ministra que afirma explicitamente votar contra as suas convicções para apoiar o colegiado sob ameaças do Comandante do Exército que jamais poderia manifestar qualquer opinião num Estado que se diz Democrático. Mas, como "o cara" falpou e vc nos lembrou, "Somos todos uma ideia": #EuSouLula - um abraço, Flávio Zimmermann.

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  5. Parabéns Jason pela lucidez em dizer o que queremos e, as vezes, as palavras nos fogem!
    Abraços

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  6. Muito obrigado, Elison! Fico contente pelo teu retorno, de mais um colega professor das humanidades e da educação, engajado teórica e politicamente. Grande abraço!

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  8. Caro Prof. Jason, belíssima e intensa reflexão. Também acredito que o nosso eterno Presidente Lula "só aguenta tudo isso, com a idade que tem, porque sabe já ser uma ideia". E, como ideia, ultrapassa toda e qualquer grade imposta pela "elite do atraso". Como ideia, ele nos inspira, nos devolve a esperança e nos fortalece... Fico pensando que, em pleno século XXI, poderíamos ter avançado na qualidade de seres humanos humanos. Ainda há muito trabalho a fazer. De repente, a escola - que somos nós os/as professores/as - instruiu ratos travestidos de homens e mulheres de bem, da beleza, da virtude, da justiça e da moralidade. Um abraço, com afeto, Jilvania Bazzo

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  9. É verdade, profa. Jilvania. E a partir dessa questão que colocas duas atitudes me parecem necessárias: a crítica permanente de si mesmo/a (como professor/a) e o posicionamento frente ao que nos acontece. No primeiro caso, para enfrentarmos eticamente nossa responsabilidade no processo de formação, e nunca é fácil, ainda mais quando se trata de instruir para aprender pensar. No segundo caso, para não sermos confundidos com os cúmplices da destruição do Estado democrático de direito, pelo silêncio de uns, ou pela ação de outros. Muito bom receber teu comentário! abraço, Jason.

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