sábado, 21 de março de 2020

Anotações de quarentena I


Albrecht Dürer, Os quatro cavaleiros
do apocalipse (Morte, Fome, Peste e Guerra)
c.1497

Até para a mais perfeita beleza o desastre é lento. Mas não me parece justo contar sempre com o pior. A regularidade mede a vida. A regularidade da comida, por mais que não se pense no que se come ou como se mastiga o que se come. A regularidade dos prazeres, sensuais, afetivos, lúdicos ou intelectuais. A regularidade do trabalho e dos exercícios físicos. A permanência de um amor e mesmo a repetição de um conflito. O tédio pode servir quase de método para uma existência. Para o tédio a vida sempre se volta, no ócio de todas as suas regularidades cumpridas. Alegria também se sente, claro, pela simples razão de se cumprir um método pessoal para se viver, embora o tédio das horas livres pareça dar mais suporte à guinada da sorte do que o estado eufórico das ocupações ordinárias. Pretender antecipar o pior, em contrapartida, é desprezar a potência originária de seu significado, a do inesperado. Porque mesmo que se espere o pior que se possa imaginar, a reação frente ao fenômeno não pode ser calculada, uma vez que é impossível prever a circunstância, tanto de alma quanto de mundo, com base nas quais o fenômeno foi possível, e menos ainda as consequências de um acontecimento que, por si mesmo, já parecia insuportável. Temer desde sempre também exaure as forças humanas. Temer o que se esperaria de mal, temer o não previsto, tudo isso cansa demasiado o corpo e o espírito. Na maior parte das vezes, mesmo nas piores condições, o animal humano tem esperança. Esperança na redenção de algum deus ou na descoberta de um remédio contra uma ameaça ou dor iminente. O mais provável é se viver com aquilo com o que já se tem, segundo a força dos hábitos, no horizonte da fartura ou da escassez. Esperar muito é sofrer não ter jamais o que se espera. Porém, não esperar coisa alguma é como secar um rio e cobrir de cimento a fonte de todo entusiasmo. Que significa agora "atingir metas", "crescer economicamente" em termos individuais ou coletivos? Ainda se precisa comer e respirar. Quando se volta para si, na obrigação de ficar em casa, o maior risco é não encontrar nada. Ainda se precisa da cultura para matar a fome da alma e respirar boas ideias sobre o árido chão da terra. O humano ainda precisa do humano, a saudade de um afeto não completamente vertido sobre o coração, o hálito de uma história, o jogo, a brincadeira, o riso estrondoso, eco de seu próprio desespero.

Jason de Lima e Silva 

7 comentários:


  1. Ótima reflexão para esses dias de isolamento social.
    Excelente texto, parabéns!!

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  2. Jason, suas anotações me ajudaram a focar em coisas que vinha martelando ao longo destes dias de confinamento em Madri, só de um jeito meio disperso. Obrigado mesmo!!!

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  3. Ivanildo, desejo saúde e serenidade a ti, a Madri! Que este quadro seja logo revertido! E que possamos em breve nos rever! abrazo y mucha suerte!

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  5. Jason, sábias palavras! Conforme a leitura avançava, mais eu tinha a certeza da inversão dos valores nesse turbulento contexto. Difícil de acreditar que as pessoas que mais devíamos proteger e respeitar, as fontes da sabedoria, estão sendo direcionados ao rio repleto de piranhas famintas, em prol dos "valores", no sentido concreto da palavra. Sou otimista, esperançoso, resiliente e determinado, mas estou num processo de preparação para, em breve, perder algumas das pessoas que mais amo, e que foram as responsáveis pela construção do meu caráter e dos meus 'valores', só que desta vez, do sentido abstrato da palavra. Muito obrigado por nos brindar com sua sabedoria! Forte abraço, nobre amigo! Túlio (postei novamente pois não consegui me identificar anteriormente).

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    1. Grato, Túlio, francas são tuas palavras e de uma verdade aguda! Coragem para este momento temos todos de reservar. Em teu caso, tiras por dia a prova no trabalho de salvamento e resgate. Mas para todos me parece urgente esse tempo de preparação e cuidado, conosco, com o que e com quem está no nosso entorno. Abraço, bom trabalho por nós e saúde sempre pro amigo!

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