Quando o grande Ciro domina a Babilônia e fortifica a cidade, após entrar
no palácio, profere um discurso, segundo nos conta Xenofonte. Para ser
virtuoso, diz, não é suficiente tê-lo sido uma vez, é necessário cultivar
sempre suas virtudes: “Assim como as artes perdem seu brilho quando
desprezadas, e os corpos seu vigor pela relaxação, também a prudência, a
temperança e a fortaleza degeneram por falta de cultura. Não nos deixemos pois
engodar pelos atrativos do deleite”. (Xenofonte, Ciropedia, col. W. M. Jackson, 1956) A necessidade do cultivo de si corresponde
a um imperativo do poder: para ser digno de governar, é necessário ser mais
virtuoso do que o povo dominado. A questão já colocada desde Alcibíades de Platão: como governar o
outro sem primeiramente governar a si mesmo? Tarefa para uma vida, sob o
princípio de que é sempre necessária fazê-la e refazê-la a todo momento, como
obra que se orienta entre o ideal de excelência das ações e a imprevisibilidade
do mundo. Os gregos possuíam essa consciência, a ponto de compreenderem e
respeitarem o poderoso rei persa helenicamente,
o que pressupõe antes medir o valor do grego a partir do outro, não apenas
daquilo que no outro pode ser reconhecido, mas sobretudo reverenciado humana e
universalmente. O governo de si é condição e finalidade da política como arte
de governo dos outros, eis o princípio. A poética das palavras e das ações não
se separa de uma ética das paixões: e a política está no cruzamento de ambas as
virtudes.
Mas o que Kant teria a ver com tudo isso? Não há Ilustração sem esforço, assim como não há civilização sem a
superação da barbárie que recomeça a cada vez que nos deixamos levar pela
dispersão ou obstinação dos impulsos. E é justamente por isso que a política
não pode abdicar do particular contingente: primeiro, como crítica permanente
ao perigo da hegemonia do universal cujo modelo de ação se oponha às
particularidades e, segundo, como horizonte aberto na ação de alguns seres
humanos que cultivam a diferença consigo mesmos: filhos inquietos e incansáveis
de seu próprio tempo. Leandro Marcelo Cisneros muito bem escreve: “O movimento
da cultura é resultante do esforço de cada indivíduo de tirar de si mesmo seus
talentos naturais, com os quais enfrenta a resistência alheia e, assim,
aproveitar de todas as formas de experiência possíveis para aumentar sua
capacidade de agir.”
Antoine Watteau, Le donneur de serenade, c. 1715 Musée Condé, Chantilly, France Fonte da imagem: https://www.wikiart.org/en/antoine-watteau/the-serenader |
Neste seu livro, há o esforço de não apenas traduzir Kant para o nosso
tempo, mas de fazê-lo falar sobre uma questão que permanece aberta para nós:
qual o sentido de se pensar esteticamente a liberdade política, mais do que
isso, o quanto é necessário à política comprometer-se à estética, sobretudo
para não perder o que ainda se pode esperar do humano, à medida que cada qual
seja capaz de exigir a excelência de si mesmo. A audácia de saber na divisa do Iluminismo corresponde à coragem de
fazer o melhor uso possível da razão e de seus talentos naturais por um motivo
tão suficiente quanto justo à nossa condição: favorecer a potência da ação
pessoal e coletiva. Resistir, em contrapartida, à ignorância. E quando se trata
de julgar, faculdade na qual se funda a estética kantiana, o gosto que
pressupõe tal inclinação não está submetido à particularidade de um interesse
encerrado no direito de cada qual gostar ou desgostar a seu modo e do que bem
quiser, como átomo que disputa seu lugar no mundo, defendendo-se. O que faz o
estético do juízo a propósito do belo é a possibilidade universalizar sua
experiência, de torná-la comunicável.
É o prazer de apreender e dizer a beleza a ponto de vivificar o ânimo não
unicamente de quem o julga, mas potencialmente de todos que possam perceber
aquilo que os ultrapassa, pois ultrapassa o idiossincrático do deleite na
contemplação, que se demora na intensidade de seu próprio prazer. Afinal, o
prazer do belo, não privadamente deleitável, permite o jogo livre entre o que
ainda não pode ser conceituado pelo entendimento, nem tão somente sentido pela
imaginação, segundo uma conformidade a fins que se pressente, mas nem parte de,
nem chega a, lugar algum, justamente porque não é determinante, e sim, na
linguagem de Kant, reflexionante.
Basta a esse juízo perceber o harmônico jogo entre as faculdades de imaginação
e do entendimento, basta-lhe isso para supor haver uma intenção de ordem nas
coisas da arte e da natureza: sua necessária ilusão metafísica.
Sem dúvida, embora dado empiricamente na contingência do mundo, o belo
não se produz sem o exercício refinado das faculdades. Se, por um lado,
imaginação e entendimento são disposições naturais do humano, o seu jogo
reciprocamente ativo e criativo no ânimo, reclama a necessidade de cada qual
cultivar a percepção da beleza nos fenômenos do mundo, sejam obras da natureza
ou obras humanas. Não é por menos que governantes gregos como Péricles e
imperadores romanos como Adriano incentivaram a arte e a cultura de seus povos,
à medida também que exerciam o domínio sobre si e sobre os demais. A raridade
do belo se impõe ao gosto se o gosto se mede pelo hábito da crítica: não
segundo o capricho de suas inclinações, mas conforme o que há de universal na
representação. Só entre mim e o outro isso é possível: o outro que é a tradição
transformada no esclarecimento e o herdeiro desconhecido do presente, e mais
efetivamente, os outros que conhecemos e nos conhecem durante a vida. Se apenas
entre mim e o outro dá-se a liberdade no jogo da representação, é porque somos
tão irredutíveis empiricamente a um modelo absoluto de validade universal para
ação, quanto transcendentais o bastante para não podermos reduzir o eu a sensações, ou a ações, sem forma
alguma. No caso da política, Leandro Marcelo Cisneros não lhe nega a
determinação do juízo, mas o compromete no exercício reflexivo do juízo
estético, e vice-versa. E se a clareza sobre o que é formalmente bom é base
para a orientação das normas de uma comunidade política e racional, a
experiência do particular universalizável não pode ser elidida à custa do
império do conceito, e sob o risco de uma única razão no governo do outro. Sem
esse horizonte, não haveria esperança nem esforço para sentirmos, pensarmos e
agirmos diferentemente na história. Não haveria portanto liberdade.
Mas isso tudo é muito provisório e insuficiente para o que este livro tem
a nos dizer. Que o leitor encontre nele não apenas oportunidade para aprender
acerca do pensamento de Kant, com o rigor que lhe é próprio e a partir do qual
Leandro Marcelo Cisneros o interpreta para, na medida de seu discurso, pensar
por si mesmo. Que o leitor encontre por fim o prazer vivo e compartilhado no
mérito de um livro de filosofia: o de nos fazer e permitir pensar.
Jason de Lima e Silva
Cf. CISNEROS, Leandro Marcelo. O juízo reflexionante estético e a liberdade política. Saarbrücken, Novas edições acadêmicas, 2017.
https://www.nea-edicoes.com/catalog/details//store/pt/book/978-3-330-75940-4/o-ju%C3%ADzo-reflexionante-est%C3%A9tico-e-a-liberdade-pol%C3%ADtica
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Belíssimo prefácio Jason.Estilo e fluência são mesmo próprios do teu bom gosto. Fiquei curioso para ler o livro, já que sou uma espécie de "kantiano até certo ponto" ou "kantiano não metafísico". E é por isso mesmo que ler Kant hoje e pensá-lo como atual é de suma importância. Parabéns pelo prefácio.
ResponderExcluirGrato, Fernando. Escrevi esse prefácio em 2014 e fique muito contente de ver o livro pronto. Sim, vale a pena lê-lo. Tem rigor e fluência, um belo trabalho do Cisneros. Agora só esperamos o lançamento!
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