segunda-feira, 3 de abril de 2017

Estética e política: prefácio a Leandro Cisneros

Quando o grande Ciro domina a Babilônia e fortifica a cidade, após entrar no palácio, profere um discurso, segundo nos conta Xenofonte. Para ser virtuoso, diz, não é suficiente tê-lo sido uma vez, é necessário cultivar sempre suas virtudes: “Assim como as artes perdem seu brilho quando desprezadas, e os corpos seu vigor pela relaxação, também a prudência, a temperança e a fortaleza degeneram por falta de cultura. Não nos deixemos pois engodar pelos atrativos do deleite”. (Xenofonte, Ciropedia, col. W. M. Jackson, 1956) A necessidade do cultivo de si corresponde a um imperativo do poder: para ser digno de governar, é necessário ser mais virtuoso do que o povo dominado. A questão já colocada desde Alcibíades de Platão: como governar o outro sem primeiramente governar a si mesmo? Tarefa para uma vida, sob o princípio de que é sempre necessária fazê-la e refazê-la a todo momento, como obra que se orienta entre o ideal de excelência das ações e a imprevisibilidade do mundo. Os gregos possuíam essa consciência, a ponto de compreenderem e respeitarem o poderoso rei persa helenicamente, o que pressupõe antes medir o valor do grego a partir do outro, não apenas daquilo que no outro pode ser reconhecido, mas sobretudo reverenciado humana e universalmente. O governo de si é condição e finalidade da política como arte de governo dos outros, eis o princípio. A poética das palavras e das ações não se separa de uma ética das paixões: e a política está no cruzamento de ambas as virtudes.
Mas o que Kant teria a ver com tudo isso? Não há Ilustração sem esforço, assim como não há civilização sem a superação da barbárie que recomeça a cada vez que nos deixamos levar pela dispersão ou obstinação dos impulsos. E é justamente por isso que a política não pode abdicar do particular contingente: primeiro, como crítica permanente ao perigo da hegemonia do universal cujo modelo de ação se oponha às particularidades e, segundo, como horizonte aberto na ação de alguns seres humanos que cultivam a diferença consigo mesmos: filhos inquietos e incansáveis de seu próprio tempo. Leandro Marcelo Cisneros muito bem escreve: “O movimento da cultura é resultante do esforço de cada indivíduo de tirar de si mesmo seus talentos naturais, com os quais enfrenta a resistência alheia e, assim, aproveitar de todas as formas de experiência possíveis para aumentar sua capacidade de agir.”

Antoine Watteau, Le donneur de serenade, c. 1715
Musée Condé, Chantilly, France
Fonte da imagem: https://www.wikiart.org/en/antoine-watteau/the-serenader

Neste seu livro, há o esforço de não apenas traduzir Kant para o nosso tempo, mas de fazê-lo falar sobre uma questão que permanece aberta para nós: qual o sentido de se pensar esteticamente a liberdade política, mais do que isso, o quanto é necessário à política comprometer-se à estética, sobretudo para não perder o que ainda se pode esperar do humano, à medida que cada qual seja capaz de exigir a excelência de si mesmo. A audácia de saber na divisa do Iluminismo corresponde à coragem de fazer o melhor uso possível da razão e de seus talentos naturais por um motivo tão suficiente quanto justo à nossa condição: favorecer a potência da ação pessoal e coletiva. Resistir, em contrapartida, à ignorância. E quando se trata de julgar, faculdade na qual se funda a estética kantiana, o gosto que pressupõe tal inclinação não está submetido à particularidade de um interesse encerrado no direito de cada qual gostar ou desgostar a seu modo e do que bem quiser, como átomo que disputa seu lugar no mundo, defendendo-se. O que faz o estético do juízo a propósito do belo é a possibilidade universalizar sua experiência, de torná-la comunicável. É o prazer de apreender e dizer a beleza a ponto de vivificar o ânimo não unicamente de quem o julga, mas potencialmente de todos que possam perceber aquilo que os ultrapassa, pois ultrapassa o idiossincrático do deleite na contemplação, que se demora na intensidade de seu próprio prazer. Afinal, o prazer do belo, não privadamente deleitável, permite o jogo livre entre o que ainda não pode ser conceituado pelo entendimento, nem tão somente sentido pela imaginação, segundo uma conformidade a fins que se pressente, mas nem parte de, nem chega a, lugar algum, justamente porque não é determinante, e sim, na linguagem de Kant, reflexionante. Basta a esse juízo perceber o harmônico jogo entre as faculdades de imaginação e do entendimento, basta-lhe isso para supor haver uma intenção de ordem nas coisas da arte e da natureza: sua necessária ilusão metafísica.
Sem dúvida, embora dado empiricamente na contingência do mundo, o belo não se produz sem o exercício refinado das faculdades. Se, por um lado, imaginação e entendimento são disposições naturais do humano, o seu jogo reciprocamente ativo e criativo no ânimo, reclama a necessidade de cada qual cultivar a percepção da beleza nos fenômenos do mundo, sejam obras da natureza ou obras humanas. Não é por menos que governantes gregos como Péricles e imperadores romanos como Adriano incentivaram a arte e a cultura de seus povos, à medida também que exerciam o domínio sobre si e sobre os demais. A raridade do belo se impõe ao gosto se o gosto se mede pelo hábito da crítica: não segundo o capricho de suas inclinações, mas conforme o que há de universal na representação. Só entre mim e o outro isso é possível: o outro que é a tradição transformada no esclarecimento e o herdeiro desconhecido do presente, e mais efetivamente, os outros que conhecemos e nos conhecem durante a vida. Se apenas entre mim e o outro dá-se a liberdade no jogo da representação, é porque somos tão irredutíveis empiricamente a um modelo absoluto de validade universal para ação, quanto transcendentais o bastante para não podermos reduzir o eu a sensações, ou a ações, sem forma alguma. No caso da política, Leandro Marcelo Cisneros não lhe nega a determinação do juízo, mas o compromete no exercício reflexivo do juízo estético, e vice-versa. E se a clareza sobre o que é formalmente bom é base para a orientação das normas de uma comunidade política e racional, a experiência do particular universalizável não pode ser elidida à custa do império do conceito, e sob o risco de uma única razão no governo do outro. Sem esse horizonte, não haveria esperança nem esforço para sentirmos, pensarmos e agirmos diferentemente na história. Não haveria portanto liberdade.
Mas isso tudo é muito provisório e insuficiente para o que este livro tem a nos dizer. Que o leitor encontre nele não apenas oportunidade para aprender acerca do pensamento de Kant, com o rigor que lhe é próprio e a partir do qual Leandro Marcelo Cisneros o interpreta para, na medida de seu discurso, pensar por si mesmo. Que o leitor encontre por fim o prazer vivo e compartilhado no mérito de um livro de filosofia: o de nos fazer e permitir pensar. 
Jason de Lima e Silva

ps: este prefácio não citou a importância do pensamento de Hannah Arendt como chave para a interpretação de Cisneiros sobre Kant, mas o leitor do livro terá a oportunidade de percebê-lo, e entenderá em que medida também Cisneiros fará sua própria interpretação do problema entre estética e política na filosofia de Kant.

Cf. CISNEROS, Leandro Marcelo. O juízo reflexionante estético e a liberdade política. Saarbrücken, Novas edições acadêmicas, 2017.
https://www.nea-edicoes.com/catalog/details//store/pt/book/978-3-330-75940-4/o-ju%C3%ADzo-reflexionante-est%C3%A9tico-e-a-liberdade-pol%C3%ADtica

2 comentários:

  1. Belíssimo prefácio Jason.Estilo e fluência são mesmo próprios do teu bom gosto. Fiquei curioso para ler o livro, já que sou uma espécie de "kantiano até certo ponto" ou "kantiano não metafísico". E é por isso mesmo que ler Kant hoje e pensá-lo como atual é de suma importância. Parabéns pelo prefácio.

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    1. Grato, Fernando. Escrevi esse prefácio em 2014 e fique muito contente de ver o livro pronto. Sim, vale a pena lê-lo. Tem rigor e fluência, um belo trabalho do Cisneros. Agora só esperamos o lançamento!

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